Parteira Dona Prazeres: Legado Vivo do Parto Natural no Brasil

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Com mais de 70 anos de experiência em partos tradicionais e a marca impressionante de mais de 5 mil bebês trazidos ao mundo em Pernambuco, a trajetória de Dona Prazeres, parteira de 86 anos, figura como um pilar essencial na preservação do parto natural no Brasil. Sua sabedoria não se limita aos atendimentos, estendendo-se à capacitação de uma vasta rede de mulheres que perpetuam a arte de “aparar menino”. Para Maria dos Prazeres de Souza, o maior regozijo reside em compartilhar o que aprendeu.

A expansiva rede de conhecimento construída por Maria dos Prazeres de Souza, carinhosamente conhecida como Dona Prazeres, engloba mais de 200 “Pupilas das Prazeres”. Mulheres oriundas de diversas localidades do estado de Pernambuco são ensinadas e encorajadas a manter viva a tradição ancestral do parto natural humanizado. Essa formação ocorre através de uma combinação de vivências práticas, encontros e reuniões frequentes, organizadas tanto em sua própria residência quanto em projetos sociais e associações, incluindo a Associação de Parteiras Tradicionais e Hospitalares de Jaboatão dos Guararapes, da qual ela é presidenta. O objetivo principal é reforçar o trabalho dessa profissional, ressaltando o valioso impacto da Parteira Dona Prazeres: Legado Vivo do Parto Natural no Brasil.

Sua atuação como gestora do Projeto Comadre, desenvolvido na segunda metade da década de 1980 durante o governo de Miguel Arraes (PMDB), destaca sua dedicação à saúde feminina. Este projeto era direcionado à garantia de direitos fundamentais para mulheres em situações de vulnerabilidade, com acesso restrito a renda ou nenhum. Dona Prazeres orgulha-se de nunca ter registrado um óbito em qualquer uma das residências que visitou durante esse período, onde orientava mulheres sobre o processo do parto natural. Ao contabilizar as mulheres capacitadas por meio desses projetos e as demais formações, Dona Prazeres estima ter treinado mais de 2 mil, com aproximadamente 200 delas atuando ativamente como parteiras hoje.

A vocação de Dona Prazeres não era inicialmente predestinada. Ao contrário de muitas de suas aprendizes, ela nasceu em uma família indígena sem tradição no partejar. Seu caminho mudou quando foi adotada por uma parteira. Aos 15 anos, ela realizou seu primeiro parto, imergindo-se assim profundamente na tradição que marcaria sua vida e o futuro de tantas mulheres e bebês.

Entre as muitas pupilas que trilharam seu caminho, Maria Fernanda da Silva, hoje com 53 anos, iniciou sua jornada na prática do parto natural aos 12, inspirada pelo ambiente doméstico onde cresceu, acompanhando a mãe e auxiliando gestantes. Seu primeiro parto foi em uma mulher da Serra que procurava sua mãe. Na ausência da genitora, Maria Fernanda atuou com maestria. Nos anos 1990, ela se aprofundou nas formações ministradas por Dona Prazeres, lapidando seu dom natural. Maria Fernanda relembra com afeto o acolhimento da mestra, que além das técnicas de partejar, ensinou-lhe a importância da humanização, da presença e da sabedoria popular no processo de nascimento.

O Legado se Multiplica: Desafios e Modernidade

A relevância das parteiras tradicionais é inquestionável, sobretudo para mulheres em comunidades remotas, distantes de hospitais. A dedicação dessas profissionais muitas vezes exige um comprometimento integral, como Maria Fernanda ilustra ao recordar uma caminhada de 2 horas e meia por terreno íngreme para atender uma mulher no cume da Serra de São Bento, onde o hospital mais próximo demandaria 3 horas adicionais de deslocamento sem meios de transporte. Atualmente, com mais de 2 mil partos naturais em sua vasta experiência, Fernanda é a presidente da Associação de Parteiras Tradicionais do Agreste, que conta com 27 integrantes das regiões de Caruaru e adjacências. Ela segue o exemplo de sua mestra, repassando o conhecimento para familiares e colegas, movida pela crença de que “é um dom! Você não escolhe, você é escolhido”.

Após aprimorar-se com Dona Prazeres, Maria Fernanda se formou em enfermagem obstetrícia, atuando em hospitais e levando a humanização para a esfera institucional. Ela percebe que muitas coisas evoluíram desde os anos 90, com ferramentas como o aplicativo WhatsApp se tornando aliadas no acompanhamento das gestantes, permitindo a comunicação contínua e a avaliação rápida de eventuais complicações.

Outra discípula notável na rede é Severina Bezerra, de 71 anos, carinhosamente apelidada de Mainha Naninha. Sem um registro exato, ela calcula ter auxiliado no nascimento de mais de 3 mil crianças. Mainha Naninha valoriza a forma como Dona Prazeres conjuga o saber tradicional com o conhecimento técnico, uma união que ela aplicou ao realizar o parto de sua própria filha no hospital. Nesse momento crucial, ela orgulha-se de ter usado seus conhecimentos para cuidar da placenta sem lesionar o períneo, um aprendizado direto com sua mestra. O períneo, área entre o ânus e a vagina, é fundamental para a sustentação dos órgãos pélvicos.

Parteira Dona Prazeres: Legado Vivo do Parto Natural no Brasil - Imagem do artigo original

Imagem: bbc.com

Parteiras e a Humanização do Nascimento: Enfrentando a Medicalização Excessiva

O parto natural, com a fusão do saber ancestral e as observações clínicas e técnicas sobre a reprodução feminina, resiste veementemente frente à prevalência das cesarianas, frequentemente recomendadas sem indicação médica. No Brasil, conforme dados do Ministério da Saúde divulgados pela Universidade de São Paulo (USP), o país ocupa a segunda posição global em número de cesarianas. Dos 3 milhões de partos anuais, 1,68 milhão são cirúrgicos, sendo 870 mil realizados sem recomendação clínica explícita. O período entre janeiro e outubro de 2022 evidenciou um acréscimo de 57,6% nas taxas de cesarianas.

Na Grande Recife, a situação se assemelha, com taxas de cesarianas superando os partos normais há mais de uma década. O Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (Sinasc) indica que 52,04% dos partos na região são procedimentos cirúrgicos. Enquanto cesarianas são vitais em situações de risco para mãe e bebê, o volume de intervenções desnecessárias reflete uma cultura de medicalização exagerada do parto, receios sobre a dor, e a preferência por um profissional específico. Os riscos de cesarianas sem indicação clínica necessária são altos, podendo levar a complicações em gestações futuras, sangramentos graves, recuperações prolongadas e atraso no vínculo entre mãe e bebê, conforme alertado pela Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) em seus documentos sobre saúde materno-infantil.

Estudos da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), publicados na revista Ciência e Saúde Coletiva, diagnosticam um cenário epidêmico de cesarianas excessivas e não desejadas no Brasil. Esses estudos apontam que experiências de parto apoiadas por movimentos sociais, como a rede de Pupilas da Prazeres, contribuem para um tratamento mais igualitário e humanizado entre as mulheres e os profissionais de saúde. Essa rede é crucial para mulheres sem acesso adequado à rede hospitalar ou que poderiam ser facilmente influenciadas a optar por uma cesariana sem necessidade comprovada por critérios médicos rigorosos.

A disposição incansável de Dona Prazeres é um traço marcante em sua longa trajetória, o que a solidifica como uma das parteiras mais influentes do país. Ela relata histórias que ilustram sua coragem e prontidão, como quando subiu por uma corda, com auxílio policial, para realizar um parto em uma casa abandonada de difícil acesso. Em outra ocasião, confrontou um homem armado para oferecer assistência e ainda, rompeu um bloqueio policial em um protesto para atender uma gestante no Suvaco da Cobra, comunidade periférica ligando Cabo de Santo Agostinho ao Recife. “Vocês estão batalhando pela segurança e eu estou batalhando pela vida”, declarou, antes de furar o bloqueio.

Para Prazeres, compartilhar o conhecimento é fundamental para preservar a saúde feminina. Sua missão é ensinar parteiras e qualquer indivíduo capaz de atuar na prevenção de mortes por complicações. Identificar fluidos incomuns, tipo sanguíneo (especialmente Rh Negativo que exige vacinação em 72 horas) são exemplos de ensinamentos vitais que transmite. Por seu valoroso trabalho, Dona Prazeres foi homenageada em 2013 com o Prêmio Bertha Lutz do Senado da República e reconhecida como um dos Patrimônios Vivos de Pernambuco. Sua história e a de suas pupilas estão imortalizadas no Museu da Parteira, que reúne acervos visuais, documentos e estudos sobre o parto natural no Brasil.

A saga de Dona Prazeres não é apenas um registro de nascimentos, mas um testamento de resiliência, sabedoria e humanidade, ecoando em cada vida que toca e em cada parteira que treina, fortalecendo a cultura do parto natural. Quer saber mais sobre figuras inspiradoras e a saúde no nosso país? Continue explorando as reportagens em nossa editoria de Análises para aprofundar seu conhecimento sobre temas relevantes.

Crédito, Eduardo Queiroga/ Acervo Museu da Parteira


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