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O vício em apostas assola milhões de brasileiros, provocando perdas financeiras significativas e abalando a saúde mental e física dos afetados. O testemunho de Antônio, um jovem de 22 anos cujo nome foi modificado para preservar sua identidade, ilustra a complexidade dessa batalha: ele calcula ter perdido aproximadamente R$ 53 mil com plataformas de apostas online. Sua jornada de recuperação, iniciada com o apoio familiar e médico, destaca uma série de medidas estratégicas.
Antônio enfrentou o desafio de deter o ciclo do jogo compulsivo. Ao reconhecer a dependência, ele confiou a administração de suas finanças ao pai e tomou medidas drásticas, como bloquear todos os seus cartões de crédito e cancelar contas em bancos que ofereciam empréstimos. Num estágio inicial, sua namorada gerenciava as pequenas quantias diárias que ele recebia para suas despesas básicas. A medida visava limitar o acesso imediato ao dinheiro e evitar recaídas. Semanalmente, Antônio participa de terapias e busca inspiração em relatos de outras pessoas que enfrentaram desafios semelhantes. Sua condição de classe média alta, ele reconhece, proporcionou acesso mais fácil a psiquiatras e psicólogos, uma realidade distinta para muitos cidadãos de baixa renda no Brasil. Segundo os profissionais, medicamentos para controle de impulsividade e humor tornaram-se parte de seu tratamento, demonstrando a abordagem multifacetada necessária para combater o transtorno.
Tratar Vício em Apostas: Estratégias e Desafios no Brasil
Desde a regulamentação das apostas online, as chamadas “bets”, no Brasil em 2018, sob o governo de Michel Temer (MDB), o número de pessoas impactadas tem crescido exponencialmente. Uma pesquisa conduzida pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) em parceria com o Ministério da Justiça e Segurança Pública, divulgada em abril deste ano, revela a dimensão do problema. Em 2023, cerca de 28 milhões de brasileiros com 14 anos ou mais, o que corresponde a 17,6% da população dessa faixa etária, relataram ter feito alguma aposta no ano anterior. Dentro desse universo, 10,9 milhões de indivíduos exibiam características de jogo de risco ou problemático, um grupo que representa 38,6% dos apostadores ou 7,3% da população geral. Alarmantemente, 1,4 milhão de brasileiros (5% dos jogadores e 0,8% da população acima de 14 anos) apresentavam um padrão de apostas que se enquadra no diagnóstico de transtorno do jogo, caracterizado pela incapacidade de controlar o desejo de apostar, mesmo diante de prejuízos acumulados.
Mecanismos Digitais Intensificam o Jogo Compulsivo
A compreensão científica evoluiu para além da dependência química, abrangendo comportamentos que ativam intensamente as áreas de prazer no cérebro. Rodrigo Machado, psiquiatra do Programa de Transtornos do Impulso do Instituto de Psiquiatria (IPq) da FMUSP, explica que jogos de azar, compras e impulsividade sexual excessiva estão no grupo das dependências comportamentais. No entanto, o avanço tecnológico impulsionou uma verdadeira explosão nos casos de dependência de jogos no Brasil, principalmente após 2018.
Com os “cassinos online no bolso”, o acesso às plataformas de apostas tornou-se contínuo, 24 horas por dia, sete dias por semana, sem a necessidade de deslocamento físico. Além disso, as plataformas digitais inovaram com mecanismos que intensificam a sedução e o poder aditivo do jogo. Enquanto apostas em futebol antes se restringiam ao resultado final, agora é possível realizar as “apostas in-play” – ou seja, enquanto a partida está em andamento –, abrangendo desde o próximo escanteio até quem receberá o próximo cartão amarelo, criando um ciclo ultrarrápido de apostas. Esse ritmo acelerado encurta o tempo entre o ato de apostar e o resultado, prendendo os jogadores em um loop de compulsividade e hiperestimulação cerebral. Ademais, mecanismos como os “prêmios de consolação” podem distorcer a percepção da perda, induzindo o jogador a acreditar que “quase ganhou” e prolongando sua participação, o que é invasivo e acentuado pela tecnologia, conforme aponta Machado. Essas inovações tornam o jogo mais acessível e nocivo, adoecendo pessoas com velocidade sem precedentes.
Relatos Pessoais: Os Impactos Devastadores
Rafael Santos, youtuber catarinense de 42 anos, morador de Joinville, é outra vítima dessa rede de dependência. Ele somente percebeu a gravidade do problema quando suas finanças foram severamente impactadas, já mergulhado em um ciclo de empréstimos, dívidas de cartão de crédito e prejuízos. Rafael calcula que suas perdas superaram R$ 150 mil, dos quais R$ 80 mil correspondem a dívidas ativas. O desespero foi tão profundo que ele chegou a considerar tirar a própria vida, expressando um sentimento de desesperança generalizada. Sem uma rede de apoio familiar e de amigos próxima, Rafael optou por compartilhar seu drama em vídeos no YouTube, utilizando sua experiência para tentar ajudar outros na superação do vício.
A primeira ação concreta de Rafael foi tentar o autoexcluir-se de todas as casas de apostas. No entanto, encontrou barreiras, pois uma das plataformas não regulamentadas não oferecia botão de autoexclusão ou chat de suporte, contrariando o previsto em lei. Em um ato radical, ele decidiu desativar seu chip de celular, que utilizava há duas décadas, por ser a única maneira que encontrou de se desvincular do site onde a maior parte de seu dinheiro foi perdido.
A Resposta Tecnológica e a Barreira Financeira
O cenário no Brasil é tão crítico que o país se tornou líder global em novas assinaturas para o Gamban, um software que bloqueia sites de apostas. Ultrapassou grandes mercados como Reino Unido, Filipinas, Estados Unidos e Argentina. Em 2024, o Brasil ocupa a segunda posição em volume de visitantes ao site do Gamban, ficando atrás apenas do Reino Unido, onde as apostas são regulamentadas desde 2005 e a empresa tem sua origem. “Estamos falando de cerca de 6 mil pessoas baixando o Gamban por mês no Brasil, sem nenhuma estratégia de marketing”, afirma Matt Zarb-Cousin, cofundador do Gamban, que tem um histórico pessoal de vício em apostas. Segundo ele, esses usuários são indivíduos “atraídos, mastigados e cuspidos” pela indústria de apostas, em busca desesperada de ajuda.
Apesar da relevância da ferramenta, Zarb-Cousin aponta uma barreira: o serviço do Gamban é pago. Essa taxa se torna um obstáculo para muitos viciados, que frequentemente enfrentam graves problemas financeiros, como evidenciam os casos de Rafael e Antônio. O ideal seria a criação de um modelo de acesso gratuito no Brasil, à semelhança do que ocorre no Reino Unido, Holanda, Noruega e Finlândia, onde o Gamban mantém parcerias com serviços locais de apoio a dependentes, oferecendo o software sem custo direto para o usuário final.

Imagem: bbc.com
O Crescimento das Empresas de Apostas no Brasil
O boom das “bets” no Brasil é corroborado pelos dados de abertura de novas empresas. Um levantamento da BigDataCorp revelou um salto expressivo: de cerca de 840 empresas de jogos de azar online no final de 2022 para mais de 2,1 mil no encerramento de 2024, um aumento de 153%. A estimativa para 2025 é a criação de mais 1,2 mil CNPJs no segmento. Curiosamente, uma parcela desproporcional dessas empresas está localizada nas regiões Norte e Nordeste. O Amazonas, por exemplo, abriga 3,5% das empresas do setor, embora represente apenas 0,95% do total de empresas no Brasil. Outros estados com destaque são Ceará (5,5% do setor contra 2,7% no geral), Maranhão (3,4% do setor contra 1,3% no geral) e Rio Grande do Norte (3,2% do setor contra 1,1% no geral).
No cômputo geral, as regiões Norte e Nordeste concentram 37,3% das empresas de apostas online registradas no país, mesmo detendo apenas 19,5% do total de CNPJs brasileiros. Thoran Rodrigues, CEO da BigDataCorp, explica essa tendência: “A população que aposta mais, que gasta mais nesse tipo de mercado, é efetivamente uma população de mais baixa renda, e o Norte e Nordeste concentram uma fatia maior dessa população”. Ele complementa que há polos tecnológicos interessantes no Nordeste que se mostraram aptos a aproveitar essas oportunidades, criando um “casamento” entre o mercado e o lado socioeconômico.
O que Funciona para Vencer o Vício em Apostas
Diante do cenário que especialistas chamam de “epidemia de vício em apostas”, que vitimiza principalmente as camadas mais vulneráveis da população, o psiquiatra Rodrigo Machado apresenta um guia sobre o que fazer ao identificar a dependência. Primeiro, buscar ajuda especializada de psicólogos e psiquiatras é crucial para um diagnóstico preciso do transtorno do jogo. Em paralelo, a participação em grupos de apoio como os Jogadores Anônimos oferece uma rede de suporte essencial. O uso de aplicativos que bloqueiam sites de apostas em celulares e computadores, bem como a solicitação de autoexclusão diretamente nas plataformas, são passos importantes na limitação do acesso.
A supervisão e o suporte financeiro de um membro da família também se mostram benéficos, especialmente nas fases iniciais do tratamento. Isso pode incluir o compartilhamento da conta bancária, o recebimento do salário por uma pessoa de confiança ou o monitoramento de dívidas e empréstimos por meio de plataformas como a do Banco Central, além de apoio na renegociação de dívidas. “Não há uma receita de bolo”, alerta Machado, pois cada indivíduo possui gatilhos e necessidades distintas, o que demanda a atuação de equipes multiprofissionais com psicólogos, psiquiatras e educadores financeiros. Para o especialista, seria crucial, em âmbito de políticas públicas, a proibição de marketing de influência por celebridades e atletas, a realização de campanhas educacionais, a vedação de mecanismos de apostas danosos como as “apostas in-play” ou múltiplas. Além disso, a criação de serviços públicos de apoio 24 horas, semelhantes aos existentes para prevenção do suicídio, e um sistema centralizado de bloqueio e autoexclusão das plataformas, em vez de parcerias com empresas privadas, são medidas defendidas para proteger a saúde mental e financeira dos cidadãos.
O caminho para tratar o vício em apostas no Brasil envolve tanto estratégias individuais quanto ações governamentais robustas, inspiradas em exemplos como as regulamentações para venda e publicidade de cigarros no país. Com boa vontade de legisladores, é possível proteger a população e enfrentar essa crescente questão de saúde pública. Se você ou alguém que conhece demonstra sinais de dependência de jogos, lembre-se da existência de locais para pedir ajuda, como o Centro de Valorização da Vida (CVV) pelo telefone 188.
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Entender a profundidade do vício em apostas e as estratégias de combate é fundamental para a saúde pública brasileira. Este panorama completo oferece insights valiosos sobre os desafios enfrentados por milhões de pessoas e as soluções em estudo por especialistas. Para mais análises aprofundadas sobre economia, política e impacto social em todo o Brasil, continue acompanhando as atualizações de nossa editoria de Análises.
Crédito, Getty Images
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