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A questão de saber se as religiões são machistas é complexa e gera debates profundos, especialmente ao analisar as três grandes vertentes monoteístas: o cristianismo, o islamismo e o judaísmo. Uma análise direta aponta que sim, essas estruturas religiosas, em certa medida, espelham os valores de sociedades que as criaram e as moldaram, as quais eram majoritariamente patriarcais. Dada a natureza doutrinária, essas instituições frequentemente demoram a se adaptar às transformações culturais e sociais, perpetuando visões historicamente estabelecidas sobre a inferioridade ou o papel secundário da mulher.
Para aprofundar a discussão, teólogos, filósofos e cientistas da religião exploram as fundamentações que permeiam essa percepção da posição feminina. A evolução da divindade, desde as antigas representações até os deuses masculinos dos monoteísmos, é um ponto de partida crucial para entender as raízes dessa configuração.
Religiões São Machistas? As Raízes Históricas e o Patriarcalismo
Ivone Gebara, freira agostiniana, filósofa e teóloga feminista, em sua obra “As Incômodas Filhas de Eva na Igreja da América Latina”, destaca estudos antropológicos que indicam que, em tempos remotos, a divindade suprema era frequentemente feminina, associada à capacidade geradora dos corpos das mulheres. Ela lembra que “a primeira estátua de barro a ser venerada é a de uma mulher em cócoras dando à luz”, uma representação da criação entendida como obra do feminino. Tal percepção, em certos aspectos, é corroborada pela ciência biológica, que aponta a primazia do feminino na origem da vida.
A transição para os monoteísmos e a adoração de divindades masculinas é um caminho longo, pontuado por muitas hipóteses, conforme Gebara. Esse processo teria se iniciado há cerca de 8 mil anos, coincidindo com um período em que a força física ganhou preponderância em civilizações primitivas do Oriente Médio. A necessidade de lavrar a terra, conquistar e manter territórios, bem como a prática da escravidão e da guerra, elevou a força bruta a um patamar de valor social e poder. Gebara reflete sobre a “desconfiança da matéria” que, emergindo da harmonia da natureza liderada pelo feminino plural, levou à criação de um “mundo das ideias, das divindades, do espírito” e, consequentemente, a “hierarquias especialmente masculinas”.
Atilla Kus, cientista da religião da PUC-SP e autor de “A Constituição de Medina”, aponta o “contexto histórico” em que a força física era mais valorizada que a intelectual como a raiz comum para a suposta inferioridade feminina nas ideias religiosas. Ele observa que, nesse cenário, a participação da mulher na vida social, comercial e econômica era limitada. Gerson Leite de Moraes, teólogo e historiador do Mackenzie, complementa ao afirmar que o “patriarcalismo antecede as organizações religiosas”. Para ele, as primeiras civilizações já dividiam o trabalho, designando aos homens papéis predominantemente externos, enquanto às mulheres cabiam os âmbitos internos. As religiões, ao serem fundadas, assimilaram essa organização de mundo, privilegiando, de modo geral, uma visão masculina.
O advogado e pesquisador Amir Mazloum, cofundador do podcast Salamaleiko, reforça que essa desigualdade não se origina exclusivamente nas religiões, mas nas estruturas sociais mais antigas da humanidade. Desde tempos primitivos, a diferença física, particularmente a força, contribuiu para que homens assumissem posições de liderança em sociedades tribais, agrícolas e, mais tarde, urbanas. Essa base histórica é crucial para compreender como os textos e as doutrinas religiosas se formaram.
O Debate no Gênesis e Suas Interpretações
A discussão central sobre o papel feminino nas religiões ocidentais tem sua base no Pentateuco, os cinco livros milenares sagrados que formam a Torá judaica e o início do Antigo Testamento cristão: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio. Rabino Uri Lam, da congregação israelita Templo Beth-El de São Paulo, enfatiza a diversidade de leituras desses textos comuns. “Existem muitas formas de se ler, comentar e interpretar o texto bíblico”, ele ressalta, explicando que o mesmo texto é exposto a diferentes interpretações influenciadas pelo tempo e espaço, permitindo que passagens sejam usadas tanto para inferiorizar quanto para valorizar a mulher.
O mito da criação do mundo, no Livro do Gênesis, serve como exemplo primordial. Pesquisadores contemporâneos o entendem como uma colagem de tradições orais, narrando a história de Adão e Eva em duas versões consecutivas com nuances distintas. No Capítulo 1, a escritura divina afirma que Deus criou “homem e mulher”, os abençoou e lhes deu a responsabilidade de dominar as criaturas. Contudo, o Capítulo 2 narra a criação de Adão, seguida da retirada de uma de suas costelas para formar Eva. Tereza Maria Pompeia Cavalcanti, teóloga aposentada da PUC-Rio, aponta que “no primeiro texto, homem e mulher são iguais. No segundo, o homem é superior à mulher”, o que demonstra um deslocamento no discurso, onde a mulher é apresentada como auxiliar de Adão.
No entanto, a interpretação do Gênesis ao longo dos milênios gerou outras visões. A ideia da costela pode ser interpretada como um sinal de igualdade, dada a localização anatômica central, ou como indício de complementaridade simbiótica entre o masculino e o feminino. Andreia Cristina de Morais, freira, pedagoga, teóloga e professora da PUC-MG, defende que a “antropologia bíblica não afirma a inferioridade feminina”. Para ela, a palavra hebraica “tsela”, comumente traduzida como “costela”, também pode significar “lado”. Assim, Deus teria formado a mulher “do seu lado”, indicando que ela “não é inferior ao homem, e sim, alguém que participa da mesma natureza, destacando a reciprocidade, a paridade e a alteridade”. Para a freira, tanto homem quanto mulher são “imagem e semelhança de Deus” e possuem “igual dignidade”.
A linguista Ana Azevedo Bezerra Felicio, autora do livro “O Amor Não Está à Venda”, concorda, argumentando que a mulher ter sido tirada do lado do homem significa uma visão de igualdade. Jorge Miguel Rampogna, pastor adventista, destaca que ambos os sexos compartilham a “mesma dignidade, feitos à imagem de Deus, e a identidade”, e que a distinção entre sexos “não implica na superioridade de um ou de outro”.
O Legado de Eva e as Consequências da “Queda”
A discussão bíblica se aprofunda na narrativa da expulsão do casal do paraíso após a desobediência a Deus, com Eva sendo a primeira a provar do fruto proibido e oferecê-lo a Adão. Ivone Gebara descreve esse mito adâmico como uma “grande referência” e, de certa forma, “a chave das proibições do poder das mulheres nas igrejas”, influenciando a percepção da sexualidade feminina. Para ela, a “racionalidade dessas proibições é totalmente mítica e não ousa enfrentar-se às reais possibilidades da vida humana”.
A ira divina se manifesta com a mulher sentindo dor ao dar à luz, e com a afirmação de que seu “desejo será para o seu marido” e que o homem “a dominará”. Rampogna interpreta essa dominação não como um mandamento, mas como uma consequência da “entrada do pecado”, que afetou tanto o relacionamento humano-Deus quanto o relacionamento homem-mulher. Ele lamenta que tal comportamento tenha sido “naturalizado” ao longo da história, reconhecendo que a desigualdade, embora tenha raízes espirituais ligadas ao pecado, sua perpetuação é uma “questão cultural”. O pastor batista Yago Martins, autor de “Igrejas Que Calam Mulheres”, sugere que, embora homens e mulheres sejam totalmente iguais, podem ter papéis diferentes na sociedade por “design divino”, não por diferença de capacidade.
Os especialistas reiteram que a questão não é que os textos sagrados sejam machistas por si mesmos, mas que foram escritos por homens em contextos sociais patriarcais, e as religiões, então, perpetuaram essas ideias da época.
O Papel da Mulher no Cristianismo Primitivo e a Reinterpretação
O cristianismo, com a chegada de Jesus, que era judeu, manteve muitas das camadas culturais de sua origem. No entanto, os relatos bíblicos mostram que mulheres tiveram papéis de destaque entre seus primeiros seguidores, sendo as primeiras a reconhecer a ressurreição, conforme o evangelho. Raylson Araujo, teólogo da PUC-SP, observa que Jesus, como um rabino que “reuniu em torno de si mulheres”, se destacou por ter “um outro olhar para a mulher”.

Imagem: bbc.com
Contudo, a institucionalização do cristianismo, a partir da organização de seus seguidores, levou à acumulação de novas camadas de machismo. Cartas do Novo Testamento, como a primeira epístola de Paulo aos Coríntios, que sugere que as mulheres fiquem caladas nas igrejas, ou a primeira carta de Paulo a Timóteo, que diz que mulheres não devem ensinar ou ter autoridade sobre homens, são frequentemente citadas. Rampogna alerta para o uso desses textos fora de contexto, enfatizando que precisam ser lidos “à luz do contexto cultural da época”. Ele reitera que a religião estava espelhando as sociedades daquele tempo, particularmente o mundo romano e grego, que tinham uma visão negativa da mulher.
Martins esclarece que, na cultura greco-romana, a submissão feminina era a norma, então as palavras de Paulo não eram chocantes para a época. Ele ressalta, contudo, que Paulo também escreveu sobre maridos protegendo e cuidando das esposas como seus próprios corpos, o que era uma novidade naquele contexto e representava uma postura contra a violência doméstica, elevando a mulher a uma posição de dignidade e igualdade. Este tipo de análise, que considera o registro textual através das lentes da época, permite enxergar avanços onde hoje poderia haver percepção de atraso.
O fundamentalismo religioso, por sua vez, bebe da tradição patriarcal, explica Moraes. Quanto mais fundamentalista, mais patriarcal, pois assume a literalidade do texto para perpetuar uma tradição supostamente masculina. Zuleica Aparecido Silvano, freira, filósofa, teóloga e biblista, da Faculdade Jesuíta, concorda que “havia machismo no contexto bíblico, dada a sociedade patriarcal”, mas ressalta que uma “má-interpretação” surge quando o contexto socio-histórico é esquecido.
Sobre a possibilidade de revisão desses textos pelas igrejas, Ivone Gebara manifesta pessimismo. Ela acredita que as mudanças virão por “outros caminhos”, como a diminuição de fiéis, a laicização dos Estados, o aumento da consciência crítica e a recuperação do amor ao próximo.
A Situação Feminina no Islamismo: Avanços em Contexto
No mundo islâmico, o fenômeno da posição feminina é igualmente contextual. Walid Mazloum, advogado e cofundador do Salamaleiko, destaca que o islã surge no século VII em uma “sociedade tribal profundamente patriarcal” onde mulheres eram tratadas como propriedade, enterradas vivas ao nascer e não possuíam direitos básicos. Nesse cenário, o Alcorão trouxe “avanços revolucionários”, conferindo direitos à herança, divórcio, propriedade, voto, participação na vida pública e escolha do marido.
Atilla Kus aponta que o islã estipula uma “divisão de papéis” e, surgindo em uma época em que a mulher não tinha voz, “dialogou com esse contexto”. Ao analisar o texto corânico, percebe-se que ele “vira de ponta-cabeça toda aquela tradição que excluía as mulheres”, transformando a visão da mulher na sociedade. Embora haja menções de que o testemunho de um homem valeria por duas mulheres, ou que a mulher deveria receber metade da herança de um homem, esses pontos representavam um avanço significativo, já que antes do islã as mulheres não tinham acesso a nada.
Amir Mazloum conclui que a ideia de um islã intrinsecamente machista é uma “leitura distorcida”. Para ele, a interferência de “culturas locais, patriarcais tanto no Oriente quanto no Ocidente, que aplicam seletivamente trechos religiosos para justificar desigualdades que são, na verdade, culturais” é o verdadeiro obstáculo. Ele reforça que o “islã não é um obstáculo à valorização da mulher; o obstáculo, muitas vezes, é a cultura local”.
O que todas as análises revelam é que, embora muitas interpretações e estruturas religiosas historicamente reforcem o machismo, a chave para compreender o tema reside no estudo aprofundado do contexto cultural em que os textos foram produzidos e nas diferentes hermenêuticas aplicadas ao longo dos séculos. O que antes era normativo e, em alguns casos, até progressista para sua época, é hoje visto através das lentes das transformações sociais contemporâneas.
Para uma visão mais aprofundada sobre as questões históricas e sociais que permeiam os estudos sobre gênero e fé, vale consultar fontes de pesquisa acadêmica, como a Scielo Brasil, que oferece artigos científicos relevantes.
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Em síntese, a discussão sobre se as religiões são machistas exige um olhar multifacetado, que considere a historicidade das doutrinas, as dinâmicas sociais da época de sua formulação e a diversidade de interpretações que os textos sagrados permitem. O desafio reside em conciliar tradição com os valores de igualdade e dignidade do século XXI. Para continuar explorando debates cruciais sobre fé e sociedade, acesse a nossa seção de Política para mais análises aprofundadas.
Crédito da imagem: Getty Images / Domínio Público
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