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O deslocamento da população de Gaza atingiu níveis “sem precedentes”, configurando um cenário jamais visto desde a Segunda Guerra Mundial, segundo análise de especialistas consultados. Enquanto o conflito entre Israel e o Hamas completa dois anos nesta terça-feira (7/10), a escassez de locais seguros e os múltiplos deslocamentos em uma região densamente povoada têm gerado uma crise humanitária complexa e rara, conforme apontado por historiadores e acadêmicos. Esta situação atinge severamente os 2,1 milhões de habitantes do território palestino.
As Nações Unidas (ONU) revelam que aproximadamente nove em cada dez residentes de Gaza foram obrigados a abandonar seus lares desde o início do confronto. A população se viu encurralada em uma faixa costeira com fronteiras amplamente fechadas, intensificando a severidade do desalojamento e as dificuldades de acesso a áreas seguras.
Deslocamento em Gaza: crise humanitária sem precedentes
Ao longo da guerra, Israel emitiu reiteradamente ordens de evacuação para zonas específicas, culminando em gigantescas ondas de migração forçada. Essas ações são justificadas pelo país como “medidas extraordinárias” para salvaguardar a vida de civis, visando alvos do Hamas. No entanto, diversos grupos de defesa dos direitos humanos contestam a medida, considerando-a como migração coercitiva, com implicações legais sérias.
Um levantamento de 2024 do Conselho Dinamarquês para Refugiados aponta que as famílias de Gaza, em média, mudaram de local seis vezes, e algumas chegaram a se deslocar até 19 vezes durante o período de conflito. As recentes operações israelenses na Cidade de Gaza resultaram em novo fluxo de centenas de milhares de pessoas em fuga, evidenciando a instabilidade constante e a falta de refúgios permanentes.
A experiência da enfermeira Soha Musleh, mãe de dois filhos, ilustra a realidade vivida por muitos. Ela foi empurrada para diversos locais à medida que as operações israelenses avançavam, transformando bairros inteiros em escombros. Dawn Chatty, professora de Antropologia e Migração Forçada na Universidade de Oxford, enfatiza a peculiaridade da situação. “O deslocamento em Gaza difere de tudo o que vimos desde a Segunda Guerra Mundial, não pelo número de deslocados, mas pelas condições adversas. Em Gaza, os palestinos não têm para onde ir, sendo forçados a fugir de um local inseguro para outro, constantemente”, explica Chatty.
Israel frequentemente utiliza panfletos, mensagens SMS e anúncios em redes sociais para alertar os moradores de Gaza sobre a necessidade de “evacuação” de certas áreas. Uma das áreas designadas como “zona humanitária” foi al-Mawasi, uma estreita faixa costeira com pouca infraestrutura, que, contraditoriamente, foi alvo de bombardeios em diversas ocasiões. As Forças de Defesa de Israel (IDF) informaram que seus avisos visam proteger civis, permitindo evacuação através de rotas designadas e atuando em conformidade com o direito internacional. As IDF acusam ainda o Hamas de se “infiltrar no ambiente civil” e afirmam não ter como alvo áreas humanitárias.
Ondas de Migração Forçada
O impacto das ordens de evacuação é claramente visível em imagens de satélite, que revelam as alterações na presença de tendas e abrigos improvisados em Gaza. Em maio de 2024, o bairro de Hamad City, perto de al-Mawasi, começou a receber um grande número de tendas após ser designado como parte de uma “zona humanitária”. Em julho do mesmo ano, uma área que antes era desabitada tornou-se densamente populosa. No entanto, desde então, Israel ordenou que os moradores se retirassem de lá em duas ocasiões, com a área sendo esvaziada de tendas e, posteriormente, repopulada após ser reincluída na “zona humanitária”, mostrando o caráter efêmero e incerto da segurança em qualquer ponto do território. Um dos eventos de evacuação ocorreu em agosto de 2024, quando as IDF alegaram que uma área próxima estava sendo usada para lançar foguetes contra Israel.
Soha e sua família vivenciaram oito deslocamentos significativos, incluindo a movimentação do norte para Khan Younis nas semanas iniciais após o ataque do Hamas em 7 de outubro de 2023, e subsequentemente para Rafah, no sul, até que a invasão terrestre israelense se expandisse para lá. Esses movimentos causaram drásticas flutuações populacionais em cidades e regiões de Gaza. As províncias do norte perderam três quartos de seus habitantes nos quatro primeiros meses do conflito. Rafah, por sua vez, chegou a abrigar cerca de quatro vezes sua população pré-guerra no início de 2024, até a ordem de evacuação de Israel, resultando na sua quase total destruição e no esvaziamento, com muitos migrando para Khan Younis e Deir al-Balah, cujas populações triplicaram. Para mais detalhes sobre o contexto humanitário, visite o site da OCHA.
Análise da Comunidade Internacional e Desafios
O professor Daniel Blatman, historiador especializado em Holocausto na Universidade Hebraica de Jerusalém, distingue o deslocamento em Gaza de outras situações globais, ressaltando o “aprisionamento, a repetição e as condições letais”. Ele observa que “em Gaza, os civis estão presos dentro de uma faixa fechada, obrigados a se deslocar repetidamente para lugares superlotados, rotulados como ‘humanitários’, mesmo com conflitos ocorrendo nas proximidades.”
Yuval Shany, professor de Direito Internacional na mesma universidade, considera a situação de Gaza “sem precedentes” pela “incapacidade da vasta maioria da população civil de deixar completamente a zona de conflito”. Shany aponta que tanto Israel quanto o Hamas “colocam em risco a população civil em suas operações”, lamentando a notável falta de pressão internacional sobre Israel e o Egito para a abertura de fronteiras. No entanto, Norman JW Goda, professor de Estudos do Holocausto na Universidade da Flórida, argumenta que, embora esses “deslocamentos induzidos sejam lamentáveis”, a alternativa seria “israelenses atacarem as posições do Hamas sem qualquer aviso aos civis”. Goda adiciona que “zonas seguras” demandam o consentimento de todas as partes, e o Hamas “poderia ter reconhecido a zona segura” em al-Mawasi, mas “continuou a usá-la para operações”.
Nos últimos meses, mais de 80% da Faixa de Gaza esteve sob controle militar israelense ou sob ordens de evacuação, atingindo 88% em julho, conforme dados da ONU. A área remanescente, de cerca de 9 km de comprimento por 5 km de largura em sua menor extensão, está parcialmente coberta por escombros, limitando ainda mais o espaço habitável e deteriorando as condições de vida.

Imagem: bbc.com
Os deslocados de Gaza enfrentam superlotação severa. Relatórios de agências parceiras da ONU em Gaza indicam que, em média, cada pessoa em tendas e abrigos improvisados possui apenas meio metro quadrado de espaço coberto, o equivalente a 40 indivíduos em um cômodo de 4m x 5m. Apesar da operação de cozinhas comunitárias, pontos de água e clínicas de campanha, as agências humanitárias lutam para atender à demanda crescente, denunciando o que consideram “obstrução sistemática” por Israel na entrada de alimentos e ajuda humanitária. As IDF, por sua vez, afirmaram estar intensificando a entrega de suprimentos para Gaza, garantindo que a “infraestrutura humanitária no sul está preparada para o tamanho populacional esperado.”
Para muitos palestinos, a situação evoca dolorosos paralelos com a Nakba (“a Catástrofe”) de 1948-49, quando cerca de 750 mil pessoas foram forçadas a fugir ou foram expulsas de suas casas com a criação de Israel. Husam Zomlot, chefe da Missão Palestina no Reino Unido e descendente de deslocados, declara que os palestinos “sabem muito bem o que aconteceu” em 1948. “Uma vez que sejam ordenados a evacuar sob a força do exército israelense, eles nunca mais poderão voltar para suas cidades. Isso aconteceu na Nakba e é o que está acontecendo com eles novamente. É um deslocamento intencional”, acusa Zomlot, afirmando que os israelenses “estão destruindo o que resta de Gaza” e os deslocados “não têm para onde retornar.”
Acusações de Crimes de Guerra e O Contexto do Conflito
Organizações como a Human Rights Watch e uma comissão da ONU já concluíram em seus relatórios que o deslocamento forçado em Gaza se assemelha a um crime de guerra, opinião compartilhada pela Anistia Internacional e pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH). Um porta-voz do ACNUDH comunicou que as ordens de evacuação frequentemente “não atendem aos requisitos estritos de uma evacuação legal”, citando a natureza “massiva, generalizada e repetida das ordens que não respondem às necessidades militares imediatas ou à segurança dos civis”, bem como ataques que atingiram civis em fuga.
Vários especialistas reforçam que tais deslocamentos forçados estão em desacordo com o direito internacional. Yuval Shany corrobora as “sérias dúvidas” sobre a conformidade dessas ordens com os critérios legais para evacuações. A embaixada israelense em Londres categoricamente rejeita as alegações de deslocamento forçado, crimes de guerra e genocídio. Israel “toma medidas extraordinárias para minimizar os danos, mesmo ao custo de uma surpresa militar”, assegura a embaixada, adicionando que as evacuações “são temporárias e implementadas para proteger a vida civil” e seguem “em estrita observância ao direito internacional humanitário”. O governo israelense também reitera que “não tem intenção de governar Gaza”.
A mais recente ofensiva israelense em Gaza teve início em resposta ao ataque liderado pelo Hamas ao sul de Israel em 7 de outubro de 2023, que resultou na morte de cerca de 1,2 mil pessoas e no sequestro de 251 reféns. Desde então, dados do Ministério da Saúde de Gaza, controlados pelo Hamas e considerados confiáveis pela ONU, indicam que mais de 66 mil pessoas perderam a vida e aproximadamente 170 mil ficaram feridas devido aos ataques israelenses no território. Uma estimativa da ONU, baseada em informações do Ministério da Habitação local, aponta que cerca de 92% das casas em Gaza, o equivalente a 436 mil unidades, foram danificadas ou completamente destruídas desde 7 de outubro de 2023.
Soha, seu marido e os dois filhos agora residem em Nuseirat, região central de Gaza, dividindo o apartamento danificado de um parente, com seus pais, irmãos e as respectivas famílias, todos amontoados em apenas um quarto. “Estamos morando lá e nos virando. No final, é melhor do que uma barraca”, comenta ela sobre a resiliência diária.
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A crise de deslocamento em Gaza permanece como um dos desafios humanitários mais urgentes e complexos da atualidade, impactando profundamente a vida de milhões de palestinos e levantando sérias questões sobre o direito internacional. Para mais notícias e análises sobre o cenário político e social global, continue acompanhando nossa editoria de Política.
Crédito, Khames Alrefi/Anadolu via Getty Images
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