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A saga de Patricia Hearst, herdeira de um império de mídia que foi sequestrada em 1974, é uma das histórias mais marcantes e complexas dos Estados Unidos. Inicialmente vista como uma refém vulnerável, sua imagem pública sofreria uma profunda metamorfose ao longo de dois anos, chocando a nação: de vítima, ela se tornou guerrilheira, assaltante de banco e, por fim, uma fugitiva procurada.
Em uma gravação divulgada pelos seus captores, Patricia, então com 19 anos, transmitia uma mensagem para seus pais. “Mãe, pai, estou bem. Estou com alguns arranhões, mas eles lavaram tudo e já estão melhorando. Peguei um resfriado, mas me deram remédio,” ela disse, antes de tranquilizar que “não estou passando fome, não estão batendo em mim nem me aterrorizando desnecessariamente.” Essa comunicação marcou o início de um drama que cativeiro que geraria manchetes por anos, levando a debates sobre lealdade e sobrevivência.
Patricia Hearst: De Herdeira a Guerrilheira Pós-Sequestro
Para muitos, o percurso da jovem herdeira se tornaria o exemplo clássico da síndrome de Estocolmo, um transtorno psicológico no qual vítimas desenvolvem laços emocionais com seus sequestradores. A narrativa da sua prisão, eventual aliança com o grupo radical e suas ações subsequentes continuam a dividir opiniões até hoje: teria ela sido culpada por seus atos ou apenas uma vítima de circunstâncias extremas?
O Sequestro e o Cenário Político-Social dos Anos 70
O rapto de Patricia Hearst, então conhecida como Patty, ocorreu por volta das 21h de 4 de fevereiro de 1974. Armados, uma mulher e dois homens invadiram o apartamento onde ela residia com seu noivo, perto do campus da Universidade da Califórnia em Berkeley, onde era estudante. Patty foi violentamente jogada no porta-malas de um carro, iniciando uma intensa busca nacional.
O caso imediatamente ganhou enorme repercussão, dada a notoriedade da família. Patricia era filha do executivo de mídia Randolph Hearst e neta do lendário magnata de jornais William Randolph Hearst, cuja figura inspirou o clássico “Cidadão Kane”. Embora sem título de nobreza, os Hearst eram considerados uma espécie de “realeza” na sociedade americana, tendo, inclusive, recebido o então príncipe Charles na residência familiar pouco antes do sequestro.
Relatos posteriores de Patricia indicam que ela permaneceu vendada, confinada em um armário por 57 dias. Do lado de fora, captores armados a ameaçavam e proferiam xingamentos tanto a ela quanto à sua família. Em momentos estratégicos, um rádio era mantido ligado com música para impedir que ela escutasse suas conversas, aumentando o isolamento e a desorientação da vítima.
O Grupo Captor: O Symbionese Liberation Army (SLA) e sua Ideologia Radical
Os responsáveis pelo sequestro eram membros do Symbionese Liberation Army (SLA), um grupo radical de esquerda. A palavra “symbionese”, criada pelo próprio grupo, evocava a ideia de simbiose – organismos de diferentes espécies vivendo em harmonia, conforme o termo biológico. Eles se apresentavam como revolucionários inspirados por movimentos radicais da costa oeste dos Estados Unidos e da América Latina, em um período de intensa efervescência política.
Os anos 1970 nos Estados Unidos foram marcados por significativa inquietação. Após a exaltação da década anterior, o país enfrentava escassez de petróleo, os mais altos índices de desemprego desde a Grande Depressão e a dura repressão a manifestações estudantis contra as guerras no Vietnã e Camboja. Esse cenário impulsionou a ascensão de grupos radicais, como o Weather Underground, que declarou “guerra” ao Estado americano com ataques planejados para evitar vítimas.
Nesse contexto de crescente ativismo radical, com jovens brancos visitando prisões californianas que qualificavam como “campos de concentração”, o SLA emergiu em 1973. O sequestro da herdeira Patricia Hearst não foi o primeiro ato do grupo, que já havia sido ligado à morte do superintendente das escolas de Oakland em novembro de 1973 por implementar cartões de identificação voluntários. Mais informações sobre a atuação e a ideologia desse grupo podem ser encontradas em diversas fontes sobre os movimentos radicais da época, como em documentos e artigos históricos sobre o Symbionese Liberation Army.
As Exigências do SLA: O “Maior Resgate da História” e a Reação Pública
As palavras de Patty Hearst na fita cassete mencionada no início deste relato chegaram ao público uma semana após o sequestro, enviada a uma rádio. Na gravação, ela também advertiu seus pais sobre o perigo de uma tentativa de resgate pela força: “Esse pessoal não é apenas um bando de malucos, eles foram muito honestos comigo, mas estão perfeitamente dispostos a morrer pelo que estão fazendo. Quero sair daqui, mas o único jeito é fazermos o que eles querem.”
A fita incluía uma mensagem do líder do grupo, Donald De Freeze, um prisioneiro negro foragido conhecido como Cinque Mtume. Ele reivindicou o sequestro de Patricia Hearst como retaliação pelos “crimes” cometidos pela família Hearst “contra nós, o povo americano e os povos oprimidos do mundo”, criticando a Hearst Corporation como um “império de mídia fascista da ultradireita.”
A demanda do SLA para o resgate foi ambiciosa: um programa de alimentação de US$ 70 em carne, legumes, verduras e laticínios para cada californiano em assistência pública, aposentado, veterano de guerra com deficiência ou prisioneiro em liberdade condicional, distribuído por mais de quatro semanas. Estimou-se que o valor total chegaria a US$ 400 milhões, qualificando-o como o “maior resgate da história” segundo jornais da época.
A opinião pública estava dividida. O historiador e jornalista Rick Perlstein observou que a inclusão de qualquer pessoa que já tivesse sido presa nas exigências de alimentos, vista como “vítima política”, gerou resistência. A falta de organização levou a um desastre na distribuição, com saques, protestos e pessoas feridas em Oakland, enquanto agentes do FBI perseguiam o SLA.
Em outra gravação, Patricia alertava a polícia novamente contra o resgate violento. Ela enfatizava estar viva, deplorando a visão de que estava morta e o risco de o FBI usar essa percepção como desculpa para um resgate forçado. A essas mensagens de Patty se somavam as de Cinque Mtume, que exibia um tom cada vez mais agressivo e ameaçador contra o que chamava de “opressores” e “insetos fascistas”, gerando alarme generalizado na população americana. Percebia-se uma mudança no tom da refém.
De Refém a Guerrilheira: A Impressionante Transformação de Tania Hearst
A guinada mais surpreendente no caso veio dois meses após o sequestro. O jornalista John Lester, porta-voz da família Hearst, descreveu a transformação na voz de Patricia: de “muito triste, grave”, para uma crescente assertividade, até a condenação explícita de seus pais. Patricia gravou uma mensagem anunciando sua adesão ao SLA e sua nova identidade: Tania, em homenagem a uma guerrilheira comunista argentina companheira de Che Guevara. Ela afirmou ter “escolhido ficar e lutar” pela sua liberdade e a de “todos os povos oprimidos”.
Com uma voz firme, Tania Hearst prosseguiu: “Pai, você disse que teme pela minha vida. E você disse que também se preocupa com a vida e os interesses de todas as pessoas oprimidas desse país. Você é um mentiroso. E como um membro da classe dominante, eu sei que os seus interesses e os da minha mãe nunca são os interesses do povo.”

Imagem: bbc.com
Para muitos, a transformação de Patty era tão radical que parecia que uma nova personalidade havia tomado conta dela. Ela perdeu a simpatia do público rapidamente. Rick Perlstein relembrou as declarações “mais absurdas”, como a de seu pai ser parte de uma conspiração para a crise energética, vindo de uma jovem que antes era vista como “normal” e “obediente.” Os pais, perplexos, publicamente expressaram descrença, argumentando que 60 dias não seriam suficientes para tal mudança sem coerção.
Em 15 de abril de 1974, Patricia Hearst fez sua primeira aparição pública como Tania. Imagens de câmeras de segurança mostraram Patty, armada com uma metralhadora, durante um assalto a banco em São Francisco. Agora, a ex-refém era uma fugitiva procurada pela polícia. O SLA, após esse ato, mudou seu esconderijo de São Francisco para Los Angeles, buscando refúgio no bairro pobre de Compton – uma decisão que se provaria fatal.
O Cerco do FBI, a Fuga e “O Ano Perdido” de Patty Hearst
A jornada do SLA em Los Angeles teve um fim abrupto na tarde de 17 de maio de 1974. A polícia, alertada sobre movimentações de armamentos pesados, cercou a casa onde o grupo estava. Recusando a rendição, os agentes lançaram granadas, e a casa incendiou-se. Seguiu-se um tiroteio transmitido ao vivo para todo o país. Randolph e Catherine Hearst, assistindo horrorizados, pensaram estar vendo a morte da filha.
Contudo, Patricia não estava na casa. Ela assistia ao tiroteio de um motel próximo à Disneylândia e, ao lado de outros fundadores do SLA, gravou sua última mensagem como Tania: “Eu morri naquele incêndio na rua 54. Mas das cinzas renasci.” Ela rejeitou a teoria de “lavagem cerebral”, afirmando que seu “privilégio de classe” havia sido renunciado e que nunca temeu a morte, embora não desejasse ir para a prisão.
Após o incidente em Los Angeles, Patricia e dois integrantes do SLA fugiram para o leste, inaugurando o que se convencionou chamar de “o ano perdido” de Patty Hearst. Nessa fase, ela se distanciou da facção principal do grupo e, de acordo com o jornalista Rick Perlstein, consolidou uma identidade independente como radical, lendo “feministas radicais e escritores anticoloniais”. Para Perlstein, Hearst possuía total autonomia para partir, caso quisesse. As oportunidades de fuga que ela não aproveitou seriam usadas como evidência contra ela em seu julgamento futuro.
De volta ao norte da Califórnia, o SLA realizou outro assalto a banco que resultou na morte de Myrna Opsahl, mãe de quatro filhos. Mike Borton, um dos membros do grupo que admitiu culpa, expressou remorso à BBC: “Nunca acreditei que pessoas inocentes deveriam ser feridas de forma alguma. Foi a pior coisa que poderia ter acontecido.” Patricia Hearst seria julgada por sua participação no assalto ao banco Hibernia, em abril de 1974.
Prisão, Julgamento e o Perdão Presidencial de Patricia Hearst
Patricia Hearst foi presa em 18 de setembro de 1975, e seu julgamento começou precisamente dois anos após seu sequestro, em 4 de fevereiro de 1976. O evento foi amplamente coberto pela imprensa, sendo chamado de “o julgamento do século” pela jornalista Linda Deutsch, que destacou o ceticismo do público em relação a Patricia. “Achavam que ela era culpada, mas como era rica, ia escapar”, afirmou Deutsch.
Durante os meses de julgamento, testemunhos de membros do SLA e diversos especialistas foram ouvidos. A defesa de Patricia, liderada por seus pais e conselheiros, argumentou que ela havia sido vítima de lavagem cerebral ou de síndrome de Estocolmo. No entanto, Deutsch opinou que essa estratégia falhou por conta das declarações anteriores da própria Patricia, que tornavam a tese difícil de sustentar.
Patricia Hearst foi condenada a sete anos de prisão por assalto a banco, mas cumpriu apenas dois. Sua sentença foi comutada pelo presidente Jimmy Carter em 1979 e, em 2001, em seu último dia de mandato, o presidente Bill Clinton concedeu a ela um perdão completo, encerrando formalmente sua pendência com a justiça.
A Versão de Patricia Hearst: “Você não tem noção de quão frágil você é”
Em uma entrevista ao Channel 4 em 1996, Patricia Hearst finalmente ofereceu sua versão dos eventos, abordando o intrincado processo psicológico que a levou a “aliar-se” aos seus captores. Ela descreveu a situação com uma ironia amarga: “Quando eles disseram, roube um banco ou vamos te matar, eu disse, ok.” Contudo, ressaltou que a simplicidade da decisão inicial se tornava complexa conforme a tortura e a pressão faziam a fachada da aliança virar “uma realidade” para ela. Ela chegou ao ponto de não conseguir mais se lembrar de sua vida anterior – pais, casa, escola – um apagamento da identidade induzido pelo medo.
“Você não tem noção de quão frágil você é,” Patricia disse, ao explicar a facilidade com que tal despersonalização pode acontecer. Mike Borton, ex-membro do SLA, que esteve com Patty durante alguns períodos, teve suas próprias dúvidas sobre a “conversão” dela. Ele notou que a suposta crença de Patricia era superficial e que ela tinha uma visão de mundo “muito estreita”. Em dado momento, ela confessou a ele o desejo de ser sequestrada novamente e levada para outro lugar. Borton optou por não reportar isso ao grupo, e essa conversa o fez ver a “conversão” dela com ceticismo. Em sua autobiografia de 1982, Hearst escreveria: “acomodei minhas ideias para que coincidissem com as deles”, uma clara referência à sobrevivência. O jornalista Benjamin Ramm sugeriu que ela aprendeu a imitar seus sequestradores com tamanha fluência que as distinções entre a Patricia real e sua criação se tornaram indistintas.
A trajetória de Patricia Hearst, que oscilou entre herdeira privilegiada e guerrilheira radical, reflete não apenas um drama pessoal, mas também as complexidades e polarizações de uma época. Seu caso continua a ser estudado como um exemplo de manipulação psicológica e um ponto de debate sobre a responsabilidade individual versus a coerção extrema. Continue acompanhando outras análises sobre crimes e acontecimentos históricos em nossa editoria de Política.
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Crédito, UPI/Bettmann Archive/Getty Images
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