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Na década de 1970, muito antes da proliferação das mídias sociais e dos primeiros fóruns da internet, o ativismo trans subterrâneo já delineava estratégias cruciais para a comunidade. Mulheres como Peggie Ames, em Nova York, atuaram como pontos focais, conectando indivíduos trans em uma era de isolamento. Ames, nascida em Buffalo, dedicou anos ao trabalho com organizações pelos direitos LGBTQIA+ em áreas rurais e suburbanas do oeste de Nova York. A dificuldade de encontrar outras pessoas trans fora das áreas urbanas densamente povoadas era uma realidade, mas Ames construiu uma extensa rede social de mulheres trans e aliados cis através de sua atuação na Erickson Educational Foundation, que financiava pesquisas sobre cuidados médicos trans, e na Mattachine Society of the Niagara Frontier, um braço local de um grupo pré-Stonewall de direitos gay.
Após ser exposta publicamente em 1973, Peggie Ames tornou-se uma das poucas mulheres transexuais abertamente visíveis naquele período. Antes da internet, essa posição a transformava em uma figura central para mulheres trans que buscavam contato com seus pares. No final da década, Ames estimava conhecer cerca de cem pessoas trans somente na região oeste de Nova York. Sua proeminência a impelia a auxiliar na conexão dos membros dispersos de sua comunidade, facilitando um tipo de “rolodex humano”.
Ativismo Trans Subterrâneo: Táticas Renascem Frente à Vigilância
Este modelo de ativismo, pautado pelo ativismo trans subterrâneo e a criação de redes discretas, funcionava por meio de mulheres trans bem-conectadas e mais visíveis que recebiam correspondências de outras pessoas trans de diversas partes do país. Em resposta, elas consultavam suas “agendas secretas” e enviavam informações de contato de outras pessoas com quem já haviam se conectado. Em um tempo em que muitos indivíduos trans viviam isolados e no armário, essas redes de “amigos por correspondência” representavam uma tábua de salvação, proporcionando um senso de comunidade e apoio fundamental.
Tal metodologia pode parecer arcaica se comparada às comunidades extremamente online dos dias atuais. Até a terminologia usada por pessoas trans para se referir a si mesmas evoluiu, com a adoção inicial do termo “transgênero” e, mais recentemente, a reivindicação do termo “transexual” para enfatizar as condições materiais de viver em um corpo trans. O uso intencional de “transexual” serve, em parte, como uma rejeição das políticas identitárias utópicas e assimilacionistas que predominaram na segunda metade da década anterior. A década de 2010 testemunhou a ascensão da identidade e visibilidade trans como ponta de lança de uma suposta guinada progressiva para os direitos LGBTQIA+, com uma explosão de mídias sociais, vitórias políticas e capas de revistas brilhantes apresentando estrelas como Laverne Cox, prometendo o fim de séculos de discriminação e vergonha. Contudo, o cenário tomou um rumo inesperado.
Da Visibilidade Online à Contra-Ofensiva: A Necessidade de Novas Estratégias
O que se seguiu àquela era de otimismo foi uma intensa campanha reacionária. A perseguição obsessiva a pessoas trans, como exemplificado pela culpabilização de trans por violências (em eventos não ligados), é o capítulo mais recente e extremo de uma contra-ofensiva antitrans que se intensifica há anos. Esse movimento se infiltrou desde as fixações de celebridades de baixa reputação e fóruns de doxxing até um movimento fascista convencional, respaldado pelos mais altos níveis governamentais. Em poucas décadas, pessoas trans passaram de uma relativa obscuridade a bodes expiatórios da direita reacionária, absurdamente acusadas de violência armada que, estatisticamente, são improváveis de cometer, e sujeitas a debates midiáticos de má-fé e leis discriminatórias que questionam seu direito de existir em público.
Para muitos, a situação é insustentável: antes acreditando que o curso da história os favoreceria, inúmeras pessoas trans agora vivem suas vidas publicamente online no exato momento em que um estado de vigilância autoritário as declarou inimigas públicas e as mira para eliminação. Simultaneamente, as mídias sociais, outrora aclamadas como ferramentas de revolução do século XXI, transformaram-se em armas de vigilância e distração. Em vez de organizar e construir poder político em comunidades, muitos se veem presos em um ciclo vicioso de discussões algorítmicas, consumindo conteúdo sem profundidade em plataformas controladas por bilionários.
Vigilância Digital e o Risco para a Comunidade Trans
A vigilância por mídias sociais impulsionada por inteligência artificial foi super intensificada sob administrações como a de Donald Trump. Dada a campanha contra pessoas trans de seu governo, a correlação é clara. Registros públicos revelam que a administração Trump contratou pelo menos quatro empresas de vigilância baseadas em IA que analisam postagens em redes sociais e afirmam ser capazes de realizar análise de sentimentos e emoções para agências federais, como o ICE. Mesmo offline, o aumento do reconhecimento facial, combinado com o policiamento transfóbico em espaços públicos como banheiros, cria novos riscos para pessoas trans e qualquer um cuja aparência não se conforme às normas de gênero. Qualquer pessoa trans que poste ou simplesmente exista online corre o risco de chamar a atenção da “Griftosphere” da direita, resultando em doxxing ou pior.
Esses riscos reforçam a ideia de que é preciso repensar o papel da internet pública como principal ferramenta de ativismo político. Toby Beauchamp, em “Going Stealth: Transgender Politics and U.S. Surveillance Practices”, descreve a longa história da vigilância estatal como um instrumento para controlar corpos trans e de gênero não-conformes. O termo “going stealth” refere-se à prática antiga de pessoas trans ocultarem seletivamente seu status transexual – não como engano, mas para recuperar certo controle sobre suas vidas e segurança, cientes de que a obscuridade perfeita é geralmente inatingível. Beauchamp exemplifica essa prática como uma resposta a uma sociedade onde suspeita e culpa são frequentemente atribuídas preventivamente a pessoas cujos corpos são percebidos como deficientes, não-brancas ou transgêneras.
Navegando o Olhar do Estado: O Conceito de Demiground
Um exemplo notável da perseguição é a tentativa, durante a administração Trump, de anular as mudanças de marcadores de gênero em documentos de identificação, como passaportes. O objetivo era tornar o status transexual de uma pessoa facilmente legível, sujeitando-a à discriminação por agentes de violência estatal em aeroportos, banheiros e outros locais. Este é apenas um entre vários exemplos de por que pessoas trans frequentemente estruturam suas vidas em torno da navegação pelo olhar do Estado. Assim, não surpreende que mais indivíduos trans estejam optando por retomar o controle e adotar estilos de vida que despriorizam a visibilidade online em favor da segurança pessoal.

Imagem: theverge.com
Essa abordagem não precisa ser “tudo ou nada”. Em um ensaio recente, a autora trans Margaret Killjoy cunhou o termo “demiground” para descrever um ativismo híbrido pós-internet. A ideia é compartimentalizar a vida online e offline em múltiplas caixas discretas, cada uma com diferentes níveis de visibilidade e risco medido. A “vida A” inclui todas as mídias sociais com uma persona mais “palatável” ou menos “apimentada”, servindo de cobertura para as “vidas B e C”, que priorizam a comunicação pessoal e se desenrolam com diferentes níveis de obscuridade pública – e, por vezes, de legalidade. O objetivo não é recuar dos espaços online e ceder terreno aos fascistas, mas sim criar um nível mais disciplinado de controle sobre a pegada digital. “Para popular o demiground, precisamos torná-lo o mais convidativo possível”, escreve Killjoy. “É preciso ficar claro que não há apenas valor político em ser obscuro para o Estado, mas que também é uma forma melhor e mais gratificante de viver.”
Reavaliando as Ferramentas: Do Virtual ao Pessoal
A reavaliação constante das ferramentas de ativismo, para garantir que continuem atendendo às necessidades da comunidade, é fundamental. Essa ideia não é nova, sendo praticada há muito tempo por pessoas em situação precária em relação à violência estatal, como as trabalhadoras sexuais. A abordagem híbrida já se manifesta em círculos sociais LGBTQIA+ na insistência em transferir discussões para plataformas criptografadas de ponta a ponta, como o Signal, ou para chats menos arriscados em plataformas baseadas em servidor como o Discord, que ainda podem estar sujeitos a intimações judiciais. Contudo, mais importante do que as ferramentas em si é a mentalidade que determina como e quando elas são usadas. Conversas regulares em chats criptografados, chamadas de Discord ou Bluesky são úteis, mas não podem substituir o tempo gasto organizando encontros presenciais com vizinhos e comunidades locais.
As redes localizadas que auxiliam pessoas trans no acesso a cuidados médicos, no combate à discriminação e na realocação para longe de estados hostis às suas vidas já existem. Adotando uma abordagem de “se você precisa saber, você sabe” para essas atividades, especialmente quando elas operam em áreas cinzentas da lei, como o aborto, é possível criar amortecedores sociais que resistem ao olhar do Estado e à fome viral insaciável das plataformas corporativas da internet. O ativismo essencial realizado no subterrâneo, com seus variados níveis de comunidade online/offline, não é glamouroso. Não se trata de conteúdo para ser compartilhado por influenciadores em um TikTok editado, um tuíte sagaz ou um carrossel no Instagram. É o trabalho não-monetizável e profundamente “não sexy” feito por pessoas como Peggie Ames, que via como sua responsabilidade ajudar pessoas como ela a se conectar e organizar fora dos espaços que as desprezavam e rejeitavam.
Embora não seja o foco deste renascimento, não se deve subestimar o papel que as comunidades online — e as mídias sociais em particular — desempenharam na união de muitas pessoas trans. Antes isolados e confusos, o advento da internet capacitou jovens e adultos trans a nomear e explicar sentimentos há muito suprimidos, conversando com seus semelhantes. Enquanto reacionários de direita fabricavam pânicos morais sobre um “contágio social” tornando “nossas crianças trans”, não era o número de pessoas trans que havia crescido, mas o alcance das redes de comunicação em velocidade da luz, que puderam mostrar a elas que não estavam sozinhas. Mesmo assim, as redes sociais online são apenas uma ferramenta, e ferramentas precisam ser constantemente reavaliadas para garantir que continuam a servir às nossas necessidades. As redes ad hoc criadas por mulheres trans como Peggie Ames podem não ser um modelo para a libertação trans em 2025. No entanto, são um lembrete de que pessoas queer e trans sempre encontraram maneiras de sobreviver no subterrâneo – e nas diversas tonalidades de cinza que existem entre o virtual e o real.
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Em suma, a transição para formas mais discretas de organização reflete uma resposta tática a um cenário social e político cada vez mais adverso para a comunidade trans. Compreender o legado de figuras como Peggie Ames e as propostas contemporâneas como o “demiground” de Margaret Killjoy é crucial para desenvolver estratégias de sobrevivência e empoderamento. Continue acompanhando nossas análises sobre questões de política e direitos sociais na editoria de Política.
Crédito: Divulgação
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