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No panorama contemporâneo, a **autopublicação de mulheres trans** tem se consolidado como um refúgio e um universo de expressão vital, apesar dos desafios e ameaças crescentes. Enquanto o mercado editorial tradicional historicamente retrata mulheres trans como uma ameaça distorcida ou uma curiosidade lastimável, frequentemente as exclui do papel de autoras e até mesmo de leitoras potenciais, relegando-as a serem faladas, mas nunca ouvidas. Este cenário instiga uma revolução silenciosa onde as comunidades digitais emergem como o novo solo fértil para a criatividade transfeminina.
A homogeneização das diversas experiências queer é uma característica marcante da publicação convencional, adaptando-as para um público presumivelmente cis-heterossexual. Pesquisas como a Lee & Low Diversity Baseline Survey 3.0 corroboram essa realidade, revelando que mais de dois terços da força de trabalho da indústria é composta por mulheres brancas cis-heterossexuais, com menos de 1% de pessoas transgênero. Autoras como M. Zakharuk, escritora de ficção lésbica, relatam que manuscritos de alta qualidade de escritoras lésbicas e transfemininas frequentemente são submetidos a ciclos exaustivos de revisão e reenvio, na esperança de que as autoras desistam.
Autopublicação de Mulheres Trans Cresce, Mas Enfrenta Ameaças
Este ambiente hostil é ainda mais agravado pelas altas taxas de desemprego, empobrecimento e abandono que as mulheres trans enfrentam na sociedade. Diante dessas barreiras institucionais intransponíveis, as comunidades online de mulheres trans buscaram na autopublicação uma solução robusta e transformadora. Marketplaces digitais simplificaram a disponibilização de manuscritos para venda, e a impressão sob demanda até permite que autoras comercializem cópias físicas. Além disso, plataformas informais e espaços de fandom, como Scribble Hub e AO3, facilitam a conexão entre autoras e seus nichos de leitores de maneira sem precedentes.
Alyson Greaves, conhecida pelo sucesso cult transfeminino “The Sisters of Dorley”, ressalta a importância de cultivar uma audiência online engajada. Greaves iniciou sua jornada no universo fandom, e quando começou a publicar ficção original no ArchiveOfOurOwn (AO3), sua base de fãs a acompanhou e ajudou a disseminar seu trabalho. Essa estratégia de utilizar as mídias sociais para construir um público leal e que “evangelizasse” sua ficção foi fundamental para o êxito de Greaves.
“The Sisters of Dorley”, classificado como dark academia, narra a história de uma organização misteriosa na Dorley Hall que sequestra jovens problemáticos e os transiciona à força em um calabouço de tortura – uma sátira mordaz sobre a deficiência do sistema de saúde britânico em prover cuidados de transição. Através de seu trabalho, Greaves explora aspectos da cultura transfeminina raramente abordados ou com pouco alcance. Isso inclui tanto o impacto prejudicial de viver em uma sociedade transmisógina quanto a internalidade transfeminina, abordando o custo psicológico de crescer em uma cultura que recusa nomeá-las além de um fetiche ou um monstro, e o dano sofrido pela negação de sua verdade interior.
A Liberdade e o Cenário Colaborativo
Apesar da dependência de encontrar a audiência e comunidade certas, a autopublicação oferece um grau de liberdade para explorar tópicos que seriam limitados por imposições editoriais e tendências de mercado. Callisto Khan, uma lésbica trans desi com experiência em equipes de aquisição, destacou as dificuldades de publicar algo inovador em uma indústria que frequentemente se apega ao passado. Ela explica que, mesmo que editoras tradicionais estejam abertas à temática trans, a aprovação de uma equipe de aquisição exige “comparáveis”, ou seja, livros recentes com vendas que possam indicar o potencial de vendas de uma nova obra. Para livros queer em geral, e especificamente os transfemininos, essa comparação é quase impossível devido à escassez de títulos no mercado. Esta limitação impede que vozes originais, particularmente as de autoras e autores trans, rompam com os moldes estabelecidos.
O primeiro romance de Khan, “The Zeus Constant”, faz parte de um universo ficcional, Gunmetal Olympus, criado por outras autoras queer autopublicadas que permitiram que fãs monetizassem obras derivadas. Essa colaboração exemplifica a natureza comunitária desse espaço, onde a popularidade online se baseia no boca a boca, na participação da audiência e no cultivo de um forte senso de coletividade. O sucesso do livro de Khan a levou a integrar a equipe de roteiristas de Gunmetal Olympus para o próximo lançamento, “The Persephone Effect”.
O Fenômeno Gunmetal Olympus e a Revisitação de Mitos
Gunmetal Olympus é um universo vasto e ambicioso, uma fusão eclética de releituras feministas da mitologia grega com o gênero mecha. Ele apresenta um panteão quase inteiramente genderbent e composto por lésbicas, que governam uma cidade murada sitiada por monstros. Seu primeiro livro, “The Hades Calculus”, é uma releitura do mito de Deméter e Perséfone, onde Perséfone é a protagonista e recebe um grau de agência negado até mesmo por muitas releituras modernas.
Khan aponta que muitas releituras gregas contemporâneas paradoxalmente diminuem a agência das personagens femininas, transformando-as em “prêmios matrimoniais” e, em alguns casos, inserindo mais violência sexual do que os mitos originais, ainda assim, se autodenominando feministas por terem uma perspectiva feminina. O trabalho de Khan busca desafiar e desconstruir esses tropos do revisionismo mitológico feminista popularizado por autoras como Margaret Atwood e Madeline Miller, em vez de replicá-los em busca de maior comercialização. Para isso, ela se beneficia imensamente da baixa barreira de entrada que a autopublicação oferece.
Essa menor barreira é igualmente vantajosa para pessoas queer não-ocidentais, como Khan e Zakharuk, cujas histórias e pontos de vista são ainda mais raros. O romance de Zakharuk, “Imago”, é um gótico distópico ambientado em uma sociedade autoritária que tenta dominar uma magia mal compreendida. Assassinatos brutais, entidades monstruosas e o horror corporal de experimentos humanos assombram os personagens principais, ambos lésbicos transmasculinos não-binários. Zakharuk, que é queer e ucraniana, inspira-se em uma história literária obscura no Ocidente, ao mesmo tempo em que lida com as atitudes de sua própria cultura em relação ao gênero, à queeridade e à não-conformidade com os mandatos da heterossexualidade. Segundo ela, as histórias ocidentais, sejam elas queer ou não, são frequentemente insulares, não se vendo como o ‘Outro’ e operando dentro de uma linguagem compartilhada de tropos que assumem como universais. Para alguém de fora desse contexto cultural, é frustrante ver sua existência reduzida a algo insignificante.
Novas Ameaças à Liberdade de Expressão Trans
Apesar de todos os benefícios, a autopublicação não é um caminho fácil para o sucesso. Muitas livrarias físicas não costumam vender livros autopublicados, e as autoras são responsáveis por todo o trabalho braçal, incluindo garantir capas, encontrar revisores, encontrar revisores de texto e fazer sua própria promoção. Não há uma editora para oferecer um adiantamento financeiro, o que significaria partilhar parte do risco. Muitas vezes, ocorre uma troca de trabalho entre autoras, como na edição de texto, conforme explica Zakharuk, pois nem sempre é viável contratar um editor freelance para cada projeto. Há uma percepção generalizada, como revela uma pesquisa do Guardian sobre o cenário editorial no Reino Unido, de que a diversidade é uma batalha contínua no setor.

Imagem: theverge.com
Zakharuk observa, ainda, que mesmo nos espaços de autopublicação, existe um certo grau de isolamento e hostilidade que as mulheres trans precisam enfrentar. Há uma ausência notável de autoras transfemininas na maioria das comunidades de autopublicação, levando-as a se reunir em espaços predominantemente transfemininos. Esta dinâmica é frequentemente tratada como acidental, embora seja uma replicação das tendências existentes na publicação tradicional. A própria Zakharuk encontrou um desses espaços oferecendo ajuda editorial a uma autora transfeminina, percebendo que a “barreira de entrada é simplesmente se importar”.
A viabilidade comercial, já desafiadora na publicação tradicional, também é uma preocupação significativa para autoras autopublicadas. Várias, como Greaves, adotaram um modelo serializado, lançando suas obras capítulo a capítulo para assinantes pagantes em plataformas como o Patreon. Embora isso possa proporcionar uma fonte constante de renda, torna as escritoras ainda mais dependentes da boa vontade do leitor e do boca a boca. O alto nível de marketing “grassroots” significou que Greaves não precisou investir em publicidade e pôde construir uma renda estável. Suas primeiras audiências não apenas comentavam seu trabalho, mas também a seguiam nas redes sociais, repostando e retuitando, auxiliando no crescimento de seu público fora dos sites de ficção como AO3 e ScribbleHub.
A Ameaça da Censura Corporativa e Conservadora
Contudo, este modelo ainda não garante controle total sobre a arte de autoras marginalizadas. Escritoras estão à mercê das empresas que detêm os marketplaces online onde suas obras são vendidas, bem como das plataformas de mídia social onde são promovidas. Isso confere às corporações privadas o poder de censurar conteúdo de fato, sem responsabilidade, deixando criadoras trans e queer em uma situação precária.
A Dra. Michael Ann DeVito, professora de interação humano-computador, especialista em redes sociais e mulher trans, estudou como as políticas de moderação de conteúdo tendem a impactar negativamente criadores marginalizados, em particular mulheres trans. Sua pesquisa, enraizada na Ciência da Computação e Informação, demonstra repetidamente que indivíduos marginalizados como as mulheres trans enfrentam uma moderação e censura mais severas do que a maioria dos usuários em quase todas as principais plataformas. DeVito observa que, enquanto as plataformas moderam com rigor as usuárias e criadoras transfemininas, são mais brandas em relação a discursos de ódio, assédio e tentativas de doxxing direcionadas a elas, mesmo quando estas ações são explicitamente contra as regras.
Mulheres trans, frequentemente forçadas para fora da economia formal, acabam dependendo dessas plataformas hostis que podem destruir arbitrariamente seus meios de subsistência com pouca ou nenhuma advertência. A escolha é angustiante: “ou você lida com o abuso constante e traumatizante, ou abandona todo o trabalho que fez e os objetivos que estava perseguindo”, conclui DeVito.
Atualmente, até mesmo esse acesso está sob risco. Embora a existência trans sempre tenha sido considerada inatamente sexual, obscena e imprópria para crianças por conservadores, as tentativas de legitimar legalmente essa equivalência e banir pessoas trans da vida pública escalaram recentemente nos EUA e no Reino Unido. Isso coincidiu com um pânico moral intensificado sobre a segurança infantil, que levou processadores de pagamento a forçar plataformas como Steam e Itch.io a remover e censurar conteúdo queer. Ambas as plataformas, embora mais conhecidas por jogos, abrigam diversos livros transfemininos autopublicados, vários dos quais foram retirados do ar. Esses regimes conservadores buscam limitar e ditar os termos do discurso sobre populações marginalizadas para controlar como elas são percebidas, destruindo sua capacidade de organização, defesa e busca por comunidade e solidariedade.
As criadoras mulheres trans não se voluntariaram para lutar contra uma onda reacionária de propaganda anti-trans. No entanto, o intenso sentimento anti-feminista e anti-queer significa que é mais vital do que nunca que suas vozes sejam ouvidas. Alcançar sua audiência apesar de todas as barreiras institucionais é uma façanha extraordinária, mas o clima político atual indica que isso só se tornará mais difícil no futuro.
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A resiliência das mulheres trans em construir seus próprios universos literários digitais, apesar dos crescentes obstáculos da publicação tradicional e das ameaças de censura, reafirma a importância de vozes diversas na literatura. Esta reportagem detalhou a jornada complexa, desde as barreiras editoriais até as estratégias de autopublicação e as novas formas de intimidação digital. Convidamos você a continuar explorando mais conteúdos e análises sobre questões sociais e políticas em nossa editoria. Continue acompanhando Hora de Começar para ficar por dentro dos temas que moldam nossa sociedade.
Crédito da imagem: Divulgação
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