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A Impacto da Relação Brasil-China na Indústria Nacional tem sido um tópico de crescente debate entre analistas e formuladores de políticas. Em um cenário onde o Brasil atingiu patamares recordes de exportação para a China, dependendo do gigante asiático como nunca antes, emerge uma preocupação significativa: essa robusta parceria comercial poderia estar cobrando um preço alto da indústria local? A China, destino de quase um terço das exportações brasileiras, é o principal propulsor do superávit comercial do país, mas essa dinâmica levanta questões sobre o futuro da manufatura brasileira.
No período entre 2013 e 2023, o Brasil exportou US$ 838,8 bilhões para o mercado chinês, com mais de 60% desse montante sendo representado por soja e minérios. Concomitantemente, conforme a professora de Relações Internacionais da PUC-Rio, Ana Elisa Saggioro Garcia, a potência asiática consolidava sua posição como um centro manufatureiro e tecnológico. Em contraste, a indústria brasileira direcionava-se para exportações de menor complexidade. Garcia ressalta que desde a década de 90, e intensificando a partir de 2009, houve um processo combinado no qual o Brasil desmantelou infraestruturas para processar grãos de soja ou beneficiar minério, investindo nas exportações in natura, enquanto a China construiu grandes moedores e beneficiamentos em seus próprios portos.
Impacto da Relação Brasil-China na Indústria Nacional
De acordo com Garcia e outros especialistas ouvidos, aprofundar-se nesse cenário é uma projeção para os próximos anos, caso a estratégia econômica nacional não passe por mudanças. Os analistas, contudo, ponderam que essa realidade pode se manifestar independentemente do estreitamento da relação comercial entre o Brasil e a China, pois o foco recai mais sobre questões de estratégia doméstica do que diretamente sobre as consequências dos negócios com o país asiático.
Histórico e Consolidação da Parceria Comercial
A relação comercial entre Brasil e China tem se solidificado por mais de três décadas, mas foi a partir de 2004 que ela se tornou notavelmente mais intensa. Nesse ano, durante seu primeiro mandato, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) conferiu à China o status de economia de mercado. Naquele período, a China era frequentemente criticada por parcelas da comunidade internacional devido ao uso de práticas antimercado para exportar produtos a preços competitivos. O reconhecimento de Lula, portanto, funcionou como uma validação de que o país asiático passaria a seguir as regras estabelecidas pelo comércio global.
Nos cinco anos seguintes, o fluxo comercial — englobando tanto exportações quanto importações — entre as duas nações mais que triplicou, elevando-se de US$ 9,1 bilhões em 2004 para US$ 35 bilhões em 2009. Nesse mesmo ano, a China superou os Estados Unidos, tornando-se o principal comprador de produtos brasileiros. Impulsionada por uma forte demanda por commodities agrícolas, minerais e petróleo, a China solidificou sua posição como o maior parceiro comercial do Brasil, sendo responsável por absorver 28% das exportações brasileiras em 2024 e atingindo 30% em 2023. Os Estados Unidos, em comparação, o segundo maior comprador, representaram pouco mais de 12% no ano passado. Somente a China importou mais produtos do Brasil do que a soma dos seis outros maiores importadores combinados, um grupo que inclui Argentina, Países Baixos, Espanha, Singapura e México.
Entre 2004 e 2024, a balança comercial bilateral registrou um saldo amplamente favorável ao Brasil, somando US$ 315 bilhões, um montante crucial que auxiliou na composição das reservas internacionais do país. No entanto, há críticos que argumentam que essa parceria econômica contribuiu para a manutenção de uma pauta exportadora brasileira predominantemente concentrada em produtos de baixo valor agregado, com um forte enfoque em commodities agrícolas e minerais.
Desafios na Pauta Exportadora Brasileira e o Perfil Industrial
Dados de 2023 revelam que 74% das importações brasileiras de produtos industriais vindos da China eram bens de alta e média-alta intensidade tecnológica, enquanto apenas 5% das exportações brasileiras para o mercado chinês se enquadravam nessa categoria. Atualmente, o Brasil exporta uma vasta gama de bens primários para a China, incluindo soja, minério de ferro, petróleo e outros com baixo processamento industrial, como carnes, milho, celulose e algodão. Isso indica uma diversificação na pauta exportadora em relação a um século atrás, quando predominava o café, porém, o foco continua em produtos pouco ou nada processados industrialmente, conforme apontam especialistas.
Uma análise do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (IEDI) corrobora que a demanda chinesa impactou diretamente a pauta exportadora do Brasil. Além disso, a competição imposta pelos produtos chineses em outros mercados resultou no deslocamento das exportações brasileiras de bens industriais. Simultaneamente, o volume de embarques chineses para o Brasil intensificou o déficit comercial da indústria de transformação nacional. O estudo do IEDI, divulgado em agosto do ano passado, destaca que “praticamente tudo o que exportamos para a China é produto básico (90,7% em 2023) e isso tem influenciado o perfil do total da pauta exportadora do Brasil”. Atualmente, 58,9% da pauta brasileira é composta por bens básicos, em comparação com 48,6% uma década atrás, sendo que quase a metade desses produtos tem a China como destino.
O IEDI também observa que o aumento da participação chinesa no comércio exterior brasileiro coincidiu com um expressivo declínio do Índice de Complexidade Econômica (ICE) do país. No ranking global que avalia a complexidade do comércio de 137 nações, o Brasil recuou da 23ª posição em 1998 para a 49ª em 2023, o dado mais recente disponível. Nesse processo, a Lei Kandir, que isentou do ICMS (imposto estadual sobre circulação) as exportações, inclusive de commodities em estado bruto, também teve um impacto considerável. A legislação, inicialmente concebida para aumentar a competitividade dos produtos brasileiros no cenário externo, acabou por incentivar a exportação de matérias-primas não processadas. Ana Garcia critica que “o Brasil abriu o seu mercado à entrada dos produtos muito mais competitivos do que os brasileiros, vindos da China e de outros países. Isso, combinado com mudanças legislativas para apoiar a exportação, gerou um desmantelamento forte da indústria nacional”.
Diferença entre Produção e Processamento: Soja e Minérios
A professora da PUC-Rio, Ana Garcia, chama a atenção para o caso da soja e dos minérios, sublinhando que o Brasil negligenciou oportunidades valiosas de empregar o superávit econômico obtido com a China para fortalecer a capacidade de processamento de grãos e de beneficiamento mineral. Embora seja o maior produtor e exportador mundial de soja, o Brasil ocupa apenas a terceira posição no ranking de países processadores da oleaginosa, ficando atrás da China e dos Estados Unidos, conforme dados do Departamento de Agricultura dos EUA (USDA).
Estatísticas da Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove) indicam que, enquanto a produção de soja no Brasil aumentou cerca de 79% entre 2014 e 2024, o processamento desses grãos expandiu-se em apenas 48% no mesmo intervalo. A China, por outro lado, vem expandindo de forma estratégica sua capacidade de processamento, construindo instalações para a produção de óleo, farelo e ração de soja em seus próprios portos e em zonas econômicas especiais. Um relatório do Serviço Agrícola Estrangeiro (FAS) do Departamento de Agricultura dos EUA estima que a China processou aproximadamente 99 milhões de toneladas de grãos de soja em 2024, quase o dobro do volume brasileiro.
Analogamente, um padrão semelhante é observado na exportação de minérios, onde a China adquire vastas quantidades de insumos básicos do Brasil para posterior beneficiamento em suas próprias indústrias. Em 2024, o Brasil comercializou mais de 280 milhões de toneladas de minerais para a China, de acordo com informações do Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram). Entre os produtos vendidos estão alumínio, caulim, cobre, ferro, manganês, nióbio, ouro, zinco, pedras naturais e pentóxico de vanádio. O minério de ferro destaca-se como o terceiro produto mais exportado pelo Brasil para a China, sendo superado apenas pela soja e pelo petróleo bruto. Entre os produtos monitorados pelo Ibram, apenas rochas ornamentais, ouro e nióbio estão em fase de indústria de transformação. Os demais são majoritariamente minérios básicos. O Ibram esclarece que nem todos são classificados estritamente como commodities, muitos atuando como insumos industriais para outros setores.
Contudo, Ana Garcia pontua que há um amplo espaço para investimentos em plantas de processamento no Brasil. Dados do Conselho Internacional de Mineração e Metais (ICMM) colocam o Brasil entre os cinco países com o maior número de instalações de processamento de minerais em larga escala. Ainda assim, a nação brasileira fica atrás dos Estados Unidos, China e Rússia em termos de beneficiamento mineral. O próprio ICMM adverte que os dados globais sobre o setor de mineração podem ser incompletos e apresentar inconsistências, embora seu banco de dados seja considerado o mais abrangente já desenvolvido.
O Dilema da Desindustrialização: Política Nacional ou Relação com a China?
Na visão da professora da PUC-Rio, o governo brasileiro tem implementado esforços nos últimos anos para reverter o quadro em relação à pauta exportadora e à baixa complexidade dos produtos nacionais, com foco em investimentos na industrialização. Ana Elisa Garcia não percebe uma aceleração do processo de desindustrialização, mencionando que “há uma atenção maior para essa área tanto da parte do Brasil quanto da própria China”. Como exemplo, ela cita o plano Nova Indústria Brasil (NIB), lançado em janeiro de 2024, que projeta investimentos de R$300 bilhões até 2026 com o objetivo de impulsionar o desenvolvimento da indústria nacional.
No entanto, a pesquisadora enfatiza a necessidade de otimizar a intensa cooperação com a China para diversificar a pauta exportadora brasileira e intensificar os investimentos em ciência e tecnologia. Recentemente, duas montadoras chinesas de veículos elétricos estabeleceram instalações no país, movimento que é visto por economistas como uma janela de oportunidade para o desenvolvimento conjunto. Garcia sugere que “o Brasil precisa cobrar da China mais pesquisa e desenvolvimento conjunto, senão vamos apenas criar um novo pátio de montadoras, como aconteceu nos anos 60 e 70 com as montadoras europeias”. A professora da PUC-Rio também visualiza potencial para a exploração da cooperação na indústria energética, com ênfase na energia solar e eólica, além do setor químico.
Os especialistas entrevistados pela BBC News Brasil são categóricos em afirmar que a relação comercial com a China não é a causa direta do processo de desindustrialização brasileira. Evandro Carvalho, professor da FGV Direito Rio e especialista em economia e governança chinesa, aponta que “não é a China que desindustrializa o Brasil. O problema está nas políticas nacionais. Nós não aproveitamos o superávit comercial para investir em setores estratégicos, em inovação e tecnologia”. Da mesma forma, Roberto Dumas, professor de Economia Internacional do Insper, avalia: “Não podemos culpar a China pela desindustrialização quando não estamos fazendo a lição de casa há 20 anos”. Segundo Dumas, o caminho para um maior desenvolvimento da indústria nacional requer investimentos no setor, mas também em áreas basilares como educação, saneamento básico e saúde. Este alinhamento com os princípios do multilateralismo, também defendido pela Organização Mundial do Comércio (OMC), sugere uma busca por estabilidade em um ambiente global dinâmico.
Risco de Dependência e Cenário Geopolítico
Dumas, do Insper, afirma que o Brasil caminha por uma rota perigosa ao depositar uma confiança excessiva em um único parceiro comercial, a China. “Ter 30% de suas exportações concentradas em apenas um país, não importa qual seja, é perigoso”, ressalta. Comparando a estratégia nacional com a gestão corporativa, ele observa que “qualquer diretor financeiro de uma empresa sabe que não se deve deixar 30% do seu negócio nas mãos de um único comprador”. No contexto do comércio internacional, ele argumenta que fatores internos e externos, como crises financeiras, instabilidade política, agitações sociais, mudanças governamentais ou pandemias, podem influenciar a capacidade de importação de um país.
O especialista manifesta preocupação com a crescente influência do que denomina “sharp power” chinês, que descreve como o uso de investimentos e comércio para atrair parceiros para sua esfera de influência. “Veja, a China não é a União Soviética, que buscava impor o comunismo nos outros países. Mas há uma busca por expandir a zona de influência a fim de buscar aliados, por exemplo, em votações na ONU.” Outros especialistas consultados, porém, discordam da existência de riscos significativos ao expandir as relações comerciais com o país asiático.
De acordo com Marcos Caramuru, ex-embaixador em Pequim e Kuala Lumpur (Malásia), a parceria está bem consolidada e deverá se manter, a não ser que surjam grandes perturbações. O diplomata observa uma tendência global de aproximação com a China, impulsionada pela política externa do governo Donald Trump nos Estados Unidos. “Todos os países estão em busca de uma liderança mundial que coincida com as suas visões de mundo sobre multilateralismo, organização das relações internacionais, sobrevivência da OMC, etc.”, afirma Caramuru. “E a China, por meio de muitas declarações públicas, está mostrando que se identifica com essas ideias.”
Por outro lado, Rubens Barbosa, ex-embaixador do Brasil em Londres e Washington D.C., sustenta que uma relação comercial crescente com a China não implica, necessariamente, uma aproximação em termos estratégicos ou políticos. Ele cita como exemplo da independência brasileira a rejeição de Pequim para que o Brasil aderisse ao projeto Cinturão e Rota, também conhecido como Nova Rota da Seda. Este programa trilionário chinês, lançado em 2013, visa expandir mercados e a presença da China globalmente através de obras e investimentos. Nos bastidores, a China tem tentado convencer o Brasil a integrar o projeto por anos. Havia a expectativa de que o presidente Lula pudesse anunciar a adesão em sua visita oficial à China em 2023, o que não se concretizou. O governo brasileiro mantém a postura de proximidade comercial sem, no entanto, aderir ao projeto. “O Brasil tem uma relação muito boa com a China, mas tem uma posição de não alinhamento, nem com os Estados Unidos, nem com a China, nem com o Brics, nem com ninguém”, reforça Barbosa.
Perspectivas Futuras e o Comércio Internacional
Desde o dia 6 de agosto, os Estados Unidos implementaram uma tarifa de 50% sobre os produtos importados do Brasil. Antes mesmo da entrada em vigor dessas taxas, o governo chinês manifestou disposição para colaborar com o Brasil, a fim de “defender conjuntamente o sistema multilateral de comércio centrado na OMC e proteger a justiça e a equidade internacional”, em uma clara referência indireta à elevação de tarifas por parte dos EUA. Parece que Pequim adota uma estratégia similar de fortalecer suas relações comerciais com parceiros globais.
Apesar desse cenário, não há grandes expectativas de que o Brasil possa redirecionar as exportações antes destinadas ao mercado americano para o gigante asiático. A razão para isso reside nas distintas composições das pautas de exportação para cada país: embora sejam os dois maiores parceiros comerciais do Brasil, China e Estados Unidos demandam produtos bastante diferentes das empresas brasileiras. Enquanto as exportações para a China estão concentradas em poucos produtos básicos, a lista de bens vendidos aos EUA é mais diversificada, com muitos produtos manufaturados. Rubens Barbosa e Marcos Caramuru destacam que a indústria nacional não possui competitividade para produtos industriais na China. “É muito difícil competir na China com produtos industriais. Fazer negócios lá requer quantidades enormes, preços razoáveis e compromissos de longo prazo”, comenta o ex-embaixador Caramuru.
Diante desses fatores, os analistas não preveem grandes alterações no futuro da relação comercial com a China. Caramuru afirma que “as relações do ponto de vista econômico-comercial vão muito bem. Uma mudança no governo brasileiro para a direita pode levar a um esfriamento, mas não acredito que com uma perda de qualidade ao ponto de ter um impacto direto sobre os investimentos ou comércio”. No entanto, os especialistas alertam para o risco de o saldo comercial favorável ao Brasil na relação com a China se tornar um déficit futuro, especialmente com os esforços de Pequim para alcançar a autossuficiência. Evandro Carvalho, da FGV, aponta que “a China tem investido muito e desenvolvido tecnologia para aumentar a sua segurança alimentar, ou seja, reduzir sua dependência das importações”.
Ao mesmo tempo, existe a possibilidade de a China intensificar as importações de produtos agrícolas dos EUA, notadamente soja, em virtude da pressão exercida por Donald Trump por um novo acordo comercial. A Casa Branca está negociando um pacto com Pequim, em troca de tarifas mais brandas para produtos chineses em solo americano. Trump já propôs que a China quadruplicasse a aquisição de soja americana para normalizar as relações. Desde a posse de Trump e a imposição das tarifas, Pequim reduziu drasticamente as importações do grão dos EUA. Em 2024, a China comprou mais de US$ 12 bilhões em soja, mas em setembro, as compras chegaram a zero. No mesmo período, o Brasil enviou quase 11 milhões de toneladas do grão para a China, um aumento de cerca de 30% em relação ao mesmo mês de 2023. O presidente chinês, Xi Jinping, sinalizou que a China poderia retomar a compra de soja caso Trump remova as tarifas aplicadas. Os dois líderes devem se reunir nos próximos dias na Coreia do Sul, e o tema central nas negociações será esse acordo comercial. Carvalho conclui que “o Brasil e os produtores de soja brasileiros vão ser impactados diretamente se a China fechar um acordo e aceitar as demandas dos EUA”.
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Aprofundar-se na análise da dinâmica comercial entre Brasil e China é fundamental para compreender os rumos da economia nacional. Os dados e as visões de especialistas indicam que o equilíbrio entre uma parceria robusta e o desenvolvimento da indústria interna é um desafio contínuo. Para uma análise aprofundada de como políticas econômicas moldam o cenário nacional e impactam o setor produtivo, explore outros artigos da nossa editoria de Economia, que continuamente investiga tendências e desafios do mercado.
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