Adolfo Lutz: pioneiro do Aedes aegypti e febre amarela no Brasil

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Na transição entre os séculos XIX e XX, um fervoroso debate científico acerca da transmissão de doenças infecciosas dominava os círculos acadêmicos. De um lado, persistiam os defensores da teoria miasmática, que postulava o adoecimento por meio do contato com ares contaminados por emanações de matéria orgânica em decomposição. Do outro, emergia uma compreensão baseada em descobertas revolucionárias, como as de Louis Pasteur, que atribuía a doenças específicas a atuação de microrganismos também específicos.

No epicentro dessa contenda estava um pequeno mosquito, que viria a ser mundialmente conhecido como Aedes aegypti. Neste cenário, o médico e cientista Adolfo Lutz (1855-1940) desempenhou um papel central, liderando esforços cruciais para solucionar os constantes surtos de febre amarela que assolavam o Brasil e a América do Sul.

Adolfo Lutz: pioneiro do Aedes aegypti e febre amarela no Brasil

Adolfo Lutz, que dirigia o Instituto Bacteriológico de São Paulo na época, enfrentou significativa resistência interna. Seu assistente, Arthur Vieira de Mendonça (1868-1915), era um convicto apoiador da teoria do miasma. Mendonça expressou seu ceticismo sobre a hipótese do mosquito, escrevendo que “nunca se viu animal tão caprichoso como esse pernilongo” e que ele traria “o ridículo para a classe médica”. A intensidade do embate resultou na exoneração de Mendonça, conforme relatado pelo historiador Jaime Larry Benchimol, pesquisador na Casa de Oswaldo Cruz e autor de “Dos Micróbios aos Mosquitos”.

Denis Guedes Jogas Junior, historiador e pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz, enfatiza a relevância do trabalho de Adolfo Lutz, ressaltando seu “papel fundamental na aderência da teoria dos mosquitos no contexto brasileiro” e que a defesa dessa aplicação deve ser vista como “o cerne do trabalho” do cientista. Esse posicionamento audacioso do pioneiro sul-americano representou um divisor de águas na medicina tropical no país.

A teoria da transmissão por mosquitos já possuía precedentes. Em 1897, o britânico Ronald Ross (1857-1932) descobriu a ligação entre a malária e o mosquito Anopheles, direcionando muitos pesquisadores globais à investigação da febre amarela. Em Cuba, o médico Carlos Juan Finlay (1833-1915) já havia chegado a conclusões semelhantes anos antes, mas sua teoria só obteve reconhecimento internacional em 1900, com a confirmação de uma comissão norte-americana. Antes disso, poucos haviam dado crédito à sua pesquisa, como explicou o historiador Benchimol.

Paralelamente, Adolfo Lutz desenvolvia seus estudos no interior de São Paulo. Ele se dedicou à observação da distribuição e dos hábitos domiciliares do mosquito, concentrando sua atenção em um inseto que chamavam de Culex fasciatos. Esse é o mesmo mosquito que, mais tarde, seria conhecido como Stegomyia fasciata e, a partir dos anos 1920, denominado finalmente Aedes aegypti. Naquela época, era considerado exclusivamente o vetor da febre amarela, só sendo posteriormente associado a outras arboviroses como a dengue, zika e chikungunya, conforme contextualiza Benchimol.

A infectologista e epidemiologista Silvia Maria Gomes de Rossi, ex-professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie, revela que, para validar a teoria da transmissão por insetos, Adolfo Lutz chegou a permitir ser picado por mosquitos infectados. Essa coragem e o método experimental são marcas de seu compromisso científico.

A historiadora Christiane Maria Cruz de Souza, professora aposentada do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia, destaca que Lutz e outros bacteriologistas contemporâneos confrontaram a resistência dos médicos defensores da teoria miasmática. Contudo, a bacteriologia, com a descoberta dos agentes causais, prevaleceu, possibilitando o desenvolvimento de medidas eficazes para conter a transmissão de doenças. Desse modo, Adolfo Lutz firmou-se como o grande demonstrador da teoria da transmissão da febre amarela no Brasil, sendo já uma figura de notoriedade científica àquela altura.

A Trajetória Educacional e Retorno ao Brasil

Nascido no Rio de Janeiro, filho de imigrantes suíços e neto de Friedrich Jacob Lutz, médico renomado, Adolfo Lutz mudou-se para Berna aos dois anos de idade. Concluiu seus estudos em medicina aos 22 anos, em 1879. Em sua formação, buscou os mais avançados conhecimentos de sua área, passando temporadas de estudo em diversos países. Em Londres, foi aluno de Joseph Lister, o “pai da cirurgia moderna” e pioneiro em antissepsia. Viajou ainda por Leipzig, Viena, Praga e Paris, onde possivelmente conheceu Pasteur.

Em 1881, Lutz retornou ao Brasil, atuando como clínico geral em Limeira, interior de São Paulo, por seis anos. Contudo, seu desejo por pesquisa o impulsionava. Ele dedicou um tempo a colaborar com o dermatologista alemão Paul Gerson Unna, investigando doenças infecciosas e medicina tropical. Sua jornada o levou ao Havaí, onde pesquisou hanseníase, e depois à Califórnia, antes de retornar definitivamente ao Brasil em 1893.

Internacionalmente reconhecido, ele assumiu a direção do Instituto de Bacteriologia em São Paulo. Era um período em que o Brasil intensificava os investimentos em pesquisa sanitária, motivado pelas epidemias que devastavam centros urbanos, dificultavam o comércio e afastavam investidores estrangeiros. Como explicou a historiadora Souza, o país buscava modernização científica e precisava combater doenças com epidemiologia pouco compreendida, cenário complementado pela infectologista Rossi.

Em sua atuação, Lutz se aproximou de nomes como Emílio Ribas (1862-1925) e Vital Brazil (1865-1950), com quem colaborou na contenção da epidemia de peste bubônica em Santos. A participação de Lutz consolidou o Brasil na vanguarda dos processos de institucionalização da medicina pasteuriana e tropical para a saúde pública, conforme o historiador Benchimol.

Adolfo Lutz: pioneiro do Aedes aegypti e febre amarela no Brasil - Imagem do artigo original

Imagem: bbc.com

Legado e Versatilidade Científica de Adolfo Lutz

A pesquisa de Adolfo Lutz foi notavelmente versátil. Ele investigou diversas doenças e seus mecanismos de contágio, viajando pelo país para estudar cólera, peste bubônica, febre tifoide, malária, ancilostomíase, esquistossomose e leishmaniose. Foi creditado com a identificação da blastomicose sul-americana, uma patologia endêmica conhecida popularmente como doença do tatu ou doença do capim, causada por um fungo. E, evidentemente, seus estudos e a confirmação da transmissão da febre amarela foram cruciais para as pesquisas sobre o mosquito Aedes aegypti, que continua a ser um vetor de doenças problemáticas na saúde pública, incluindo a dengue, zika e chikungunya.

Além de suas contribuições na bacteriologia e parasitologia, Lutz também foi um pioneiro no estudo de propriedades terapêuticas de plantas e um zoólogo, descrevendo espécies de anfíbios e insetos antes desconhecidas. “Como não era incomum nessa época, Lutz era um cientista muito versátil, que passou por vários campos do saber”, afirma Joga Junior. Ele também orientou a “primeira tese de entomologia médica” do Brasil, o trabalho de doutoramento de Celestino Bourroul (1880-1958) intitulado “Mosquitos do Brasil”. Segundo a historiadora Souza, Lutz “se destacava em estudos que estavam em voga na época: sobre micróbios, parasitas e seus hospedeiros.”

Em homenagem ao seu legado, uma espécie de perereca descoberta no Cerrado em 2017 recebeu o sobrenome Lutz em sua denominação científica: Aplastodiscus lutzorum.

Em 1908, após sua aposentadoria, Adolfo Lutz aceitou o convite de Oswaldo Cruz (1872-1917) para integrar a equipe do instituto que hoje leva o nome de Fundação Oswaldo Cruz. Permaneceria ali até sua morte, em 6 de outubro de 1940. No Rio de Janeiro, ele atuou como mentor do “jardim de infância da ciência”, um grupo informal liderado por Oswaldo Cruz, onde se reuniam semanalmente para discutir as principais publicações científicas internacionais, conforme Joga Junior. Essa dedicação à disseminação do conhecimento solidificava ainda mais seu impacto na pesquisa brasileira.

A relevância dos estudos de Adolfo Lutz ganha destaque ainda maior sob a ótica contemporânea das mudanças climáticas. Embora a temática não fosse objeto de debate na sua época, médicos consideravam a influência do clima na incidência de doenças. Sua habilidade em perceber o impacto ambiental na proliferação de enfermidades ficou evidente na descoberta da transmissão da malária silvestre. Ele identificou que as águas acumuladas nas bromélias criavam um ambiente propício à proliferação de mosquitos e insetos, encontrando assim o transmissor da doença que assolava trabalhadores na duplicação da linha ferroviária que conectava o Porto de Santos a São Paulo, como ressalta Benchimol.

“Lutz era um cara que diferia muito de seus pares na época. Ele tinha uma visão muito ampla dos processos médicos e biológicos. Era um bom médico, mas também era zoólogo, entomologista, dominava a microbiologia e tinha uma atenção muito aguda para essa problemática ambiental”, avalia Benchimol. Essa perspectiva abrangente, focada nos ciclos de vida dos insetos e parasitas e na sua interação com o ambiente, era rara então, e altamente pertinente nos dias de hoje, marcados pelo aquecimento global. Joga Junior pontua que os estudos de Adolfo Lutz “têm relações com as questões contemporâneas de mudanças climáticas e novas arboviroses como zika e chikungunya”. Ele observa que mesmo a perda da capacidade vetorial do Aedes aegypti para transmitir a febre amarela, tema ainda debatido na ciência, pode ter vínculos com a concorrência evolutiva e as alterações ambientais.

“Ele estudava várias doenças que dependem do meio ambiente, então tudo que afeta o ecossistema também impacta na transmissão dessas doenças”, reforça a médica Rossi. “Poucos dos seus colegas [naquele momento] tinham as habilidades necessárias para essa grande angular que combinava estudos de microbiologia, de parasitologia e de ambiente”, elogia Benchimol. Apesar de sua enorme contribuição e respeito de seus colegas, Lutz é, segundo Benchimol, menos lembrado que figuras como Chagas, Cruz e Vital Brazil, devido à sua aversão à publicidade e a grandes embates públicos. Era um “sábio” com um apreço singular pela precisão, como ilustrado por seu frequente uso do termo “precisamente”. Para explorar mais sobre figuras que impactaram a saúde pública, você pode consultar publicações do Ministério da Saúde.

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Em suma, Adolfo Lutz foi uma figura monumental na história da ciência brasileira, um verdadeiro desbravador na medicina tropical e um pensador cuja visão holística antecipou discussões cruciais sobre ambiente e saúde pública. Seu pioneirismo com o Aedes aegypti e a febre amarela deixou um legado indelével. Para continuar a acompanhar artigos sobre personalidades influentes e análises complexas, acesse nossa editoria de Análises.

Crédito: Arquivo Histórico Fundação Oswaldo Cruz


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