A Reviravolta da Tecnologia Global: Como a Aposta da Apple Acelerou a Liderança Chinesa

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Empresas americanas de tecnologia, como a gigante Apple, buscaram por muito tempo as linhas de produção na China como uma estratégia comercial supostamente imbatível. A lógica por trás dessa decisão era direta e bastante sedutora para as corporações ocidentais: fabricar produtos no país asiático representava um custo significativamente menor, resultando, assim, em margens de lucro substancialmente maiores.

No entanto, o que inicialmente parecia uma jogada de mestre no cenário dos negócios internacionais pode ter gerado um desdobramento não antecipado: as empresas dos Estados Unidos passaram anos, talvez sem plena consciência, alimentando e fortalecendo seus futuros concorrentes diretos. Ao hospedar a fabricação de vastas quantidades de telefones celulares, veículos elétricos e uma miríade de outros produtos de alta tecnologia para companhias estrangeiras, a China não apenas acumulou experiência, mas também desenvolveu capacidades industriais, tecnológicas e um corpo de recursos humanos com um nível de sofisticação e escala que poucos, ou nenhum, outro país no mundo atual podem rivalizar.

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Essa relação, que de um lado buscava eficiência e lucro para as corporações americanas, serviu, do lado chinês, como um pilar fundamental para o seu próprio avanço tecnológico. Analistas da área indicam que essa utilização mútua não ocorreu por mero acaso, mas sim por uma orquestração deliberada por parte da China. Kyle Chan, pesquisador em pós-doutorado da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, esclarece que a China concebeu um plano muito específico e intencional para atrair e fazer uso de empresas do calibre da Apple. O objetivo primordial era aprimorar integralmente sua própria economia e seu ecossistema produtivo. “Nunca se tratou simplesmente de dizer: ‘OK, venham fabricar aqui, fiquem ricos e todos ficamos satisfeitos’”, afirma Chan, destacando que a mensagem subjacente era que essas empresas precisariam contribuir de maneira tangível para o desenvolvimento do país.

Este entendimento se estende não apenas à Apple, mas a outras potências industriais e tecnológicas globais que investiram em infraestrutura produtiva na China, incluindo Volkswagen, Bosch, Intel, SK Hynix e Samsung. A implicação mais ampla desse processo é que o epicentro global da inovação e da indústria tecnológica tem vivenciado uma notável alteração geográfica, uma mudança de peso que aponta para um novo arranjo de poder.

Os tempos em que os Estados Unidos desfrutavam de uma quase exclusividade na capacidade de gestar tecnologias com o potencial de alterar o curso da história humana estão visivelmente superados. A cena contemporânea é caracterizada por uma rivalidade acirrada e multifacetada, englobando praticamente todos os setores tecnológicos. Conforme observado por Han Shen Lin, diretor para a China da empresa de consultoria americana The Asia Group, ao serviço em espanhol da BBC, a disputa tecnológica global não pode mais ser interpretada como “uma corrida com um só cavalo”, o que ressalta a pluralidade de atores em ascensão.

A Jornada da Apple e o Despertar da China Industrial

A transição da produção da Apple para o território chinês, um movimento que teve seu início consolidado no começo dos anos 2000, é vista como um divisor de águas. De acordo com Patrick McGee, ex-correspondente do jornal britânico Financial Times no Vale do Silício e autor do livro “Apple in China: The Capture of the World’s Greatest Company”, a escolha da Apple de centralizar a fabricação de mais de 90% de seus produtos na China foi, sem dúvida, um gerador de lucros colossais para a empresa. Contudo, as ramificações de tal decisão estenderam-se muito além dos balancetes financeiros da corporação.

Com base em mais de 200 entrevistas conduzidas com ex-colaboradores da Apple, McGee delineia como a fortuna e a altamente sofisticada capacidade de produção da empresa americana tiveram um papel crítico no financiamento, no aprimoramento de competências, na supervisão de processos e no suprimento de matérias-primas e componentes para os fabricantes chineses. Esse intercâmbio intenso e contínuo resultou na aquisição e aprimoramento de habilidades técnicas e industriais por parte desses fornecedores asiáticos, que agora, como aponta o autor, “Pequim está usando essas habilidades como arma contra o Ocidente”.

Em consonância com essa análise, Kyle Chan observa que, progressivamente, os fornecedores de origem chinesa começaram a tomar o lugar das fábricas estrangeiras que anteriormente integravam as complexas cadeias de produção dos iPhones e de outros equipamentos desenvolvidos pela Apple. Este processo de substituição iniciou-se pelos componentes mais elementares, como as peças de cristal utilizadas em lentes e telas, avançando para os módulos de câmera e, em última instância, abrangendo os próprios microchips que formam o cérebro desses dispositivos. Uma análise recente, divulgada em 2024 pelo jornal japonês Nikkei Asia, revelou um dado significativo: impressionantes 87% dos fornecedores que abastecem a Apple atualmente operam fábricas em solo chinês. Adicionalmente, mais da metade dessas companhias tem sua sede principal estabelecida na China continental ou na região administrativa especial de Hong Kong. Apesar de a Apple ter empenhado esforços em diversificar as nações onde os insumos para seus aparelhos são produzidos, a companhia permanece substancialmente dependente da estrutura manufatureira da China e da força de trabalho local, cujos trabalhadores recebem, em média, de US$ 1 a US$ 2 por hora (o equivalente a aproximadamente R$ 5,45 a R$ 10,90).

Tal grau de dependência não passa despercebido, com McGee chegando a manifestar que, caso assim desejasse, o governo chinês possuiria o poder de paralisar a produção da Apple da noite para o dia, dada a envergadura e a centralidade das operações da empresa no país.

Ascensão e Competição: Gigantes Chineses e o Desafio Americano

Paralelamente à sua consolidação como o principal polo fornecedor da Apple, a China canalizou o vasto conhecimento e as capacidades técnicas transferidas por essa e outras empresas ocidentais para o desenvolvimento de suas próprias soluções tecnológicas. Este processo de aprendizado e adaptação permitiu que o país avançasse significativamente na concepção e produção de telefones celulares, veículos elétricos de ponta e até mesmo modelos de inteligência artificial que rivalizam em sofisticação com os desenvolvidos nos Estados Unidos. Engenheiros e investimentos de capital, muitas vezes na ordem de milhões de dólares aportados pela Apple e por outras corporações ocidentais, não apenas construíram fábricas, mas também inocularam na indústria chinesa o saber-fazer e a expertise em inovação que se revelaram fundamentais para este salto qualitativo. Conforme documentado por Patrick McGee em seu livro, essa transferência de conhecimento e capital permitiu uma colaboração direta com os colossos tecnológicos chineses, como a Huawei, a Xiaomi e a BYD, consolidando uma base para a competitividade local.

Este percurso nos conduz ao cenário geopolítico-tecnológico contemporâneo, onde, embora os Estados Unidos ainda conservem sua posição de vanguarda em certas áreas, a China agora ostenta um conjunto de gigantes tecnológicos próprios, preparados para disputar a liderança em uma variedade de segmentos. Han Shen Lin, diretor para a China da The Asia Group, pontua que “os Estados Unidos continuam liderando nas tecnologias fundamentais e nos chips avançados, mas a China está reduzindo distâncias rapidamente em inovação e produção em escala no setor de aplicativos”. Kyle Chan, por sua vez, complementa essa perspectiva afirmando que “a China começou a ultrapassar os Estados Unidos em algumas áreas e a grande questão aqui é a velocidade dessa ultrapassagem”, indicando a celeridade e a intensidade dessa corrida.

A Batalha pela Inteligência Artificial

Entre os múltiplos setores em disputa, um campo que magnificamente reflete a intensidade da competição entre a China e os Estados Unidos é o da inteligência artificial (IA), atualmente aclamada como a joia da coroa da indústria tecnológica global. Há décadas, a China tem investido de forma robusta e estratégica no aprimoramento da IA, porém, os Estados Unidos pareciam ter conquistado uma vantagem considerável com o lançamento do GPT-3 pela empresa americana OpenAI em 2020 – um modelo de linguagem que se revelou revolucionário. Os lançamentos subsequentes de diversas iterações do ChatGPT, cada uma mais aprimorada que a anterior, cativaram o público e a indústria ao redor do globo, solidificando a liderança aparente americana no campo.

Contrariando as expectativas de muitos, o cenário foi alterado em janeiro deste ano com a emergência de um novo competidor: o chatbot chinês DeepSeek, notavelmente similar em capacidades ao ChatGPT. Seus criadores indicaram que o desenvolvimento do DeepSeek demandou uma fração ínfima dos recursos investidos no seu concorrente ocidental. Esse evento repercutiu significativamente, a ponto de o então presidente americano, Donald Trump, caracterizar a notícia como uma “advertência” severa à indústria tecnológica dos Estados Unidos, sinalizando a chegada de um adversário de peso.

A Reviravolta da Tecnologia Global: Como a Aposta da Apple Acelerou a Liderança Chinesa - Imagem do artigo original

Imagem: bbc.com

Kyle Chan enfatiza que a relevância do DeepSeek transcende a simples paridade de performance: “O importante não foi só que, de repente, um modelo chinês fosse quase tão bom quanto os melhores modelos americanos, nem que tivesse sido elaborado com menos recursos de informática e, segundo eles, a um custo muito menor”, explica Chan. Ele prossegue, destacando que o aspecto verdadeiramente crucial é que o DeepSeek “tenha sido elaborado desafiando as restrições de exportação de chips para IA”.

Desde o ano de 2022, os Estados Unidos implementaram proibições que impedem clientes chineses de adquirirem os chips H100 codificados da Nvidia, os mais avançados disponíveis para o treinamento de sistemas de inteligência artificial. Em resposta a essa barreira, a Nvidia passou a desenvolver e produzir versões de seus chips com potência reduzida, concebidas especificamente para o mercado chinês. Para Kyle Chan, a aparição de um chatbot chinês com a capacidade de rivalizar com seu congênere americano adquiriu um forte caráter de patriotismo e superação. “Para os chineses, aquilo era um desafio para a supremacia americana”, conforme sua análise.

A empresa DeepSeek publicamente afirma ter conduzido o treinamento de seu modelo de linguagem utilizando os chips menos potentes que a Nvidia disponibiliza no mercado chinês. No entanto, há rumores circulando na indústria de que o fundador da companhia pode ter adquirido um volume substancial de chips H100 avançados, os quais teriam sido então combinados com outros de menor sofisticação para aprimorar a capacidade de seu sistema.

Mais recentemente, em abril, Donald Trump chegou a proibir a exportação do chip H20, que até aquele momento era o modelo mais avançado autorizado para venda na China, sob a alegação de riscos à segurança nacional. Posteriormente, o presidente americano reverteu a proibição, permitindo a retomada das vendas, mas com uma condição inédita: a empresa vendedora deve repassar ao governo americano 15% do valor de suas vendas na China. Este acordo sem precedentes tem levantado questionamentos sobre sua legalidade e seus desdobramentos a longo prazo no comércio internacional.

As restrições impostas pelos Estados Unidos às exportações têm obrigado as companhias chinesas a intensificar sua busca por alternativas tecnológicas próprias. O professor Chan avalia que, a curto prazo, tais medidas “são eficazes para desacelerar o desenvolvimento da China”. Contudo, ele pondera que “a médio e longo prazo, elas impulsionam os esforços daquele país para produzir sua própria tecnologia e cadeia de fornecimento independente”. Um exemplo marcante desse efeito colateral pode ser observado no caso da Huawei. Em 2019, a gigante tecnológica chinesa foi inserida na “Lista de Entidades” por envolvimento em “atividades contrárias à segurança nacional ou aos interesses da política externa dos Estados Unidos”, sob acusações que incluíam espionagem, furto de propriedade intelectual e vigilância de dados.

Em decorrência dessas sanções, os telefones celulares da Huawei foram impedidos de utilizar o sistema operacional Android, desenvolvido pela Google. Kyle Chan comenta que “depois de sofrer o golpe, a Huawei passou vários anos desenvolvendo seu próprio sistema operacional e seus próprios chips SoC”. Ele conclui que “não acredito que eles tivessem feito isso em tão larga escala, se não tivessem recebido sanções tão fortes dos Estados Unidos, o que, essencialmente, os obrigou a fazê-lo”, sublinhando como as sanções paradoxalmente aceleraram a autossuficiência tecnológica da empresa.

As Vantagens Estratégicas da China

Os Estados Unidos alcançaram a liderança tecnológica global por uma combinação de fatores, que incluíram a força inegável de seu setor privado, incentivos econômicos substanciais para a inovação e pesquisa, e uma vasta produção de energia, entre outras condições favoráveis. Diante desse panorama estabelecido, surge a questão central: quais são os diferenciais estratégicos que têm permitido à China ascender e se consolidar como uma força dominante na corrida tecnológica global?

Especialistas da área apontam, em primeiro lugar, para a abordagem chinesa na formulação de sua política industrial, caracterizada por um comprometimento enfático. O Estado chinês direciona recursos consideráveis e de forma contínua para o desenvolvimento de setores que são estrategicamente designados como vitais para o avanço nacional. Em uma entrevista à BBC News Mundo, Kyle Chan enfatizou um contraste marcante: enquanto nos Estados Unidos os investimentos tendem a ser ágeis e reativos às dinâmicas do mercado, o governo chinês demonstra uma notável adesão a seus planos de longo prazo, investindo de forma consistente nessas iniciativas, mesmo que estas não gerem retornos lucrativos imediatos ou em curtos períodos.

Adicionalmente, Chan ressalta a existência de “um sistema que fomenta uma concorrência interna muito, muito feroz, na qual os governos regionais apoiam suas próprias empresas locais, criando uma espécie de torneio”. Essa dinâmica de competitividade intensiva no ambiente doméstico não apenas fortalece as empresas chinesas internamente, mas as prepara e as capacita para serem robustamente competitivas não somente dentro das fronteiras chinesas, mas também no palco global.

Outro termo que frequentemente surge nas análises de especialistas ao explicar as vantagens competitivas da China na corrida tecnológica é a “magnitude”. Esta palavra abrange a dimensão massiva da população chinesa e a consequente vastidão de dados gerados sobre seus habitantes, elementos que se convertem em ferramentas poderosas. Han Shen Lin, do The Asia Group, sublinha que “a China pode colocar em prova tecnologias emergentes com toda a sua população”, o que significa um ambiente de testes em escala inigualável para o aperfeiçoamento e validação de inovações.

Para ilustrar, Kyle Chan fornece um exemplo concreto: “A capacidade dos fabricantes chineses de medicamentos de recrutar pacientes com muito mais rapidez e aproveitar os bancos de dados nacionais centralizados de pacientes acelerou muito o ritmo dos testes clínicos e a descoberta de produtos farmacêuticos na China, especialmente no setor da oncologia”. Essa agilidade e a escala proporcionadas pelo vasto universo de dados e pacientes dão à China uma vantagem substancial no desenvolvimento de novos produtos e tratamentos. Todas essas características posicionam a China em um patamar de influência, no mínimo, tão relevante quanto o dos Estados Unidos para moldar os contornos futuros da tecnologia global.

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Ao ser questionado sobre quais pistas desse futuro ele já consegue discernir em sua vida em Xangai, na China, Han Shen Lin relata que “o que mais me surpreende é como a tecnologia avançada se integra à perfeição na vida cotidiana, desde a logística baseada na inteligência artificial até o pagamento sem dinheiro em espécie em todo tipo de transações”. No entanto, o especialista também adverte que a trajetória atual da China carrega consigo certos riscos. “Sem a colaboração e a aceitação de muitos países em nível global, especialmente em relação aos padrões, a China corre o risco de ficar encerrada em uma câmara de eco”, salienta. Para mitigar esse perigo de isolamento e garantir uma influência global, a China tem intensificado sua abrangência no Sul Global, por meio de iniciativas robustas como o projeto da Iniciativa Cinturão e Rota, e tem dedicado esforços significativos para consolidar sua predominância na definição de padrões dentro de organismos multilaterais importantes, como a Organização das Nações Unidas (ONU), demonstrando sua visão estratégica para o futuro tecnológico e geopolítico mundial.

Com informações de BBC News Brasil


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