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Uma jovem americana, mulher transgênero de 22 anos, decidiu deixar os Estados Unidos e buscar asilo no Canadá, alegando um cenário crescente de hostilidade e políticas restritivas que afetam a comunidade LGBTQIA+ em seu país de origem. Hannah Kreager, que vivia no Arizona, empreendeu a jornada para o norte em abril, e agora aguarda a decisão sobre seu pedido de proteção em Calgary, na província de Alberta.
A decisão de Kreager reflete temores profundos diante de um contexto descrito por ativistas e organizações como cada vez mais adverso para pessoas transgênero nos EUA. Sua experiência pessoal a levou a tomar precauções diárias, como evitar banheiros públicos e aglomerações. Além disso, ela começou a estocar medicamentos para terapia de reposição hormonal, preocupada com a possibilidade de uma futura proibição federal ao tratamento para adultos, após o cuidado para menores já ter sido classificado por alguns setores governamentais como “mutilação química e cirúrgica”.
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Cenário de Crescente Preocupação e o Gatilho para a Partida
O ponto decisivo para Kreager foi um rumor sobre a possível invocação da Lei de Insurreição de 1807 pelo então presidente Donald Trump. Essa legislação concede ao governo federal a autoridade para usar tropas militares no controle de uma possível rebelião interna. A preocupação de Hannah intensificou-se com a perspectiva de ser abordada pelas autoridades e questionada sobre sua identificação.
Embora ela tivesse renovado sua carteira de motorista para que o documento já refletisse seu nome legal e sua identidade de gênero, a questão do passaporte gerava grande ansiedade. O passaporte ainda a identificava com o nome de batismo e continha um marcador de gênero “X”, uma prática que foi interrompida em janeiro, quando o governo de Trump decretou que apenas dois sexos – masculino e feminino – deveriam ser reconhecidos em documentos federais.
A série de perguntas sobre o que aconteceria se seu passaporte não fosse considerado uma identificação válida, para onde a levariam ou quais opções teria, a fez concluir que não estava disposta a correr riscos. Em suas palavras: “Eu decidi que não estava disposta a correr nenhum risco, mesmo que até hoje não tenha sido imposta a lei marcial”. Assim, Kreager despediu-se de seus amigos em Tucson, no Arizona, organizou seus pertences em um carro e, com o suporte de sua família, dirigiu para o norte, atravessando a fronteira para o Canadá, onde formalizou o pedido de asilo.
Busca por Proteção no Canadá: Um Precedente Legal?
Hannah Kreager aguarda a deliberação de seu caso em Calgary. Segundo sua representante legal, Yamena Asari, se o status de proteção for concedido, este caso pode abrir um precedente significativo. Asari revela que o número de clientes americanos buscando orientação para seguir os passos de Kreager tem aumentado. Dados da Junta de Imigração e Refugiados do Canadá divulgados recentemente indicam que mais americanos solicitaram o status de refugiados na primeira metade de 2025 do que em todo o ano de 2024.
Historicamente, americanos representam uma fatia pequena do total de solicitantes de asilo no Canadá – cerca de 245 de um universo de 55 mil pedidos – e sua taxa de aceitação é tradicionalmente baixa. Muitos solicitantes de asilo que chegam ao Canadá por via terrestre vindos dos EUA são frequentemente “devolvidos” em virtude de um acordo bilateral que estipula que o pedido de asilo deve ser feito no primeiro país “seguro” em que o indivíduo chegue.
Asari observa que “solicitar asilo geralmente não é a primeira opção por vários motivos”. O processo é demorado, podendo levar até dois anos, e não há garantias de aceitação. Além da incerteza para o solicitante, a medida implica na impossibilidade de retornar ao país de origem durante o processo e após a eventual concessão.
“Leis Antitrans”: A Legislação em Aumento nos EUA
Para Kreager, com um perfil recente do ensino médio e experiência de trabalho na pizzaria da mãe, outras opções de visto, como os de talento ou negócios, não se mostravam viáveis. Dessa forma, diante da avalanche de leis relacionadas a gênero que foram aprovadas ou estão em tramitação em diversos estados americanos, juntamente com as ações da administração Trump para revogar programas e departamentos federais de apoio e proteção à comunidade LGBTQIA+, a decisão pelo asilo se tornou o caminho principal.
Ano | Iniciativas Nacionais (Total) | Leis Aprovadas | Leis Consideradas |
---|---|---|---|
Até 2022 (média) | Nenhuma registrada nacionalmente | — | — |
2024 | 88 | — | — |
2025 (até o momento) | 981 | 121 | 860 (estimado) |
Fonte: Trans Legislation Tracker (iniciativa independente) |
Segundo o Trans Legislation Tracker, uma plataforma independente que acompanha projetos de lei que afetam pessoas trans nos EUA, até agora, em 2025, foram aprovadas 121 legislações desse tipo, enquanto outras 981 estão sob consideração nos âmbitos estadual e federal. Este volume representa um aumento substancial em relação ao ano anterior, que já havia batido recordes. Em apenas dois anos, o número de iniciativas nacionais, que antes era nulo, saltou para um total de 88 em 2024, evidenciando uma aceleração preocupante.
Tipos de Projetos de Lei e Ordens Executivas
Entre os projetos de lei introduzidos em 2025, muitos se concentram na área da educação, buscando, por exemplo, eliminar referências à “ideologia de gênero” do material escolar ou tornando obrigatório que as escolas revelem aos pais a identidade trans dos alunos. Outras propostas abrangem o setor da saúde, com a proibição de serviços de afirmação de gênero, ou o setor esportivo, onde mais de um terço dos estados já implementou leis que proíbem atletas transgêneros de participar em competições femininas.
A abrangência é vasta, incluindo direitos civis, isenções religiosas, uso de pronomes e acesso ao serviço militar. A capilaridade geográfica também é notável: câmaras legislativas em 49 dos 50 estados dos EUA estão avaliando esse tipo de projeto de lei. Adicionalmente, uma série de ordens executivas assinadas por Donald Trump desde que ele reassumiu a presidência em janeiro intensificam esse quadro.

Imagem: bbc.com
Entre as ordens emitidas, destacam-se: “Acabando com a doutrinação radical nas escolas”, “Protegendo menores da mutilação química e cirúrgica” e “Mantendo homens afastados os esportes femininos”. Em 16 de abril, a procuradora-geral Pam Bondi reforçou a posição do governo sobre esta última, afirmando: “Esta tem sido uma causa enorme para ele [Trump]. E é bastante simples: as meninas competem em competições esportivas femininas. Os homens, nas masculinas.”
Diante desse cenário, a GLAAD – uma organização sem fins lucrativos que milita pela eliminação da discriminação com base na identidade de gênero e orientação sexual – documentou, nos primeiros 100 dias do governo Trump na Casa Branca, um total de 225 ataques classificados como anti-LGBTQIA+. Baseada nesse ambiente político e social, a advogada Ansari formalizou o pedido de asilo de Hannah Kreager em 1º de junho, argumentando que sua cliente “teme perseguição em seu país devido às políticas antitrans da administração atual”.
Processo de Asilo Canadense e Argumentos de Perseguição
O processo para solicitar asilo no Canadá é semelhante ao de outros países, exigindo que o solicitante demonstre que seus receios de perseguição estão fundamentados em raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opinião política, e que sua vida corre perigo ou que existe risco de tortura ou tratamento cruel. Além disso, é necessário provar a incapacidade de obter proteção do Estado em seu país de origem ou de se realocar internamente de forma segura. Kreager foi categórica ao rejeitar a ideia de se mudar para outros estados americanos que oferecem maior proteção a pessoas trans, declarando: “Nenhum estado é seguro”.
“Mesmo se ela tivesse feito isso, se tivesse se instalado na Califórnia, Nova York ou Illinois, ainda haveria serviços federais aos quais gostaria de acessar e que a afetariam, como o de modificar seu passaporte para que refletisse seu gênero correto”, explicou a advogada Yamena Asari, destacando a abrangência das políticas federais.
Após um agente de imigração canadense avaliar a elegibilidade e a admissibilidade do pedido, o caso é encaminhado à Junta de Imigração e Refugiados do Canadá para a decisão final. Asari, que possui vasta experiência com solicitantes de asilo de diversas partes do mundo, como África Ocidental e países árabes, demonstra confiança no caso de Hannah. “Com base nos meros fatos, minha cliente tem um caso sólido”, afirma, traçando paralelos entre os casos internacionais e a situação de Hannah. “Estamos falando que, em certos estados, pessoas como ela, americanas como ela, poderiam não ser reconhecidas.”
Sentimento Anti-Imigração e o Cenário no Canadá
Apesar da convicção da advogada, existem outros fatores a serem considerados, como a possível falta de compreensão, por parte das autoridades canadenses, do complexo contexto sociopolítico dos EUA, e um crescente sentimento anti-imigração dentro do próprio Canadá. Pesquisas recentes corroboram esse sentimento. A última edição do “Focus Canadá”, realizada desde 1976 pelo Instituto Environics em parceria com o Instituto de Diversidade da Universidade Metropolitana de Toronto, revelou em novembro que, “pela primeira vez em um quarto de século, uma maioria de canadenses diz que há imigração demais”.
O levantamento apontou que 6 em cada 10 canadenses (58%) acreditam que o país está aceitando muitos imigrantes, um aumento de 14% em relação a 2023, ano em que já havia sido registrado um crescimento de 17 pontos percentuais. Esse percentual é mais elevado entre os eleitores do Partido Conservador (80%) do que entre os do Partido Liberal (45%) ou dos social-democratas do Novo Partido Democrático (36%), embora o aumento geral seja equivalente entre todos os grupos.
Outra pesquisa, publicada também em novembro pelo Museu Canadense pelos Direitos Humanos, apresentou um cenário similar, indicando que 56% dos entrevistados acreditam que refugiados e solicitantes de asilo “recebem benefícios demais” no Canadá, um aumento de 49% na edição do ano anterior. A mesma pesquisa evidenciou uma “diminuição significativa” na proporção de canadenses que consideram que a imigração melhora o país: de 52% em 2023 para 44% este ano. Yamena Asari sugere que “os imigrantes de todos os tipos, mas especialmente os solicitantes de asilo, estão sendo usados como bodes expiatórios diante da crise de custo de vida no país”.
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Ainda assim, a advogada confia que a Junta de Imigração e Refugiados examinará os fatos além dessas percepções sociais. Enquanto aguarda a audiência decisiva, Hannah Kreager possui permissão para estudar e trabalhar no Canadá, e está arrecadando fundos por meio da plataforma GoFundMe para cobrir as despesas e honorários de sua representação legal. Ela se considera privilegiada, ciente de que a possibilidade de sair dos EUA e buscar asilo no Canadá não é uma realidade para todos. Kreager relata sentir-se mais segura e que o temor de acordar e ter sua “existência criminalizada” está diminuindo. Contudo, o futuro contexto político nos EUA pode trazer novas mudanças. Se os democratas recuperarem o controle da Câmara dos Deputados nas eleições de meio de mandato em 2026 ou da Casa Branca em 2028, é esperada uma abordagem mais favorável aos direitos LGBTQIA+. Isso, paradoxalmente, poderia enfraquecer o argumento de Kreager de temer perseguição em seu país devido à sua identidade de gênero. Segundo a própria Hannah, “se o Canadá me negar o asilo, vai ser porque as coisas estão melhores nos EUA”.
Com informações de BBC News Brasil
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