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À medida que as temperaturas globais sobem consistentemente devido às mudanças climáticas, o acesso a sistemas de resfriamento como o ar-condicionado torna-se uma questão de saúde pública fundamental, especialmente para famílias de baixa renda nos Estados Unidos. O calor extremo, caracterizado por ondas cada vez mais intensas e frequentes, tem revelado a vulnerabilidade de milhões de pessoas que enfrentam a dificuldade ou a impossibilidade de manter suas residências refrigeradas, transformando uma necessidade em um luxo inatingível para muitos. Esta realidade, que afeta diversas regiões do país, gera consequências alarmantes para a saúde e a economia familiar, destacando disparidades sociais já existentes e expondo deficiências nas políticas públicas.
Em cidades como Nova Orleans, na Louisiana, o clima é marcado por um calor opressivo que se estende por grande parte do ano. O diretor médico de gestão de emergências do Centro Médico Universitário New Orleans, Jeffrey Elder, relata o atendimento constante a pacientes que sofrem de insolação grave. Ele aponta que, anualmente, diversas pessoas chegam ao pronto-socorro em estado de emergência devido ao calor excessivo. Idosos e crianças são particularmente suscetíveis, uma vez que suas capacidades de regular a temperatura corporal são limitadas, tornando-os mais vulneráveis a complicações quando não dispõem de ambientes refrigerados, seja por falta de aparelhos, mau funcionamento ou pela impossibilidade de arcar com os custos operacionais.
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Os quadros de emergência decorrentes da insolação frequentemente envolvem alteração do estado mental do paciente. Em situações críticas, indivíduos chegam inconscientes, apresentando uma temperatura corporal interna de 39,5 ºC ou superior. Nestes casos, a primeira intervenção médica consiste em procedimentos de resfriamento intensivo, como banhos de gelo. Com os verões batendo recordes de temperatura anualmente e as projeções indicando ondas de calor mais fortes e numerosas, especialistas em clima alertam para um cenário de crescente risco à saúde dos norte-americanos.
Pesquisadores e ativistas entrevistados pela BBC expressam preocupação com a saúde da população. Eles reiteram que a dificuldade em cobrir os gastos com ar-condicionado coloca em risco a capacidade das pessoas de evitar doenças e mortes relacionadas ao calor extremo. Jeffrey Elder enfatiza que a maneira mais eficaz de prevenir a insolação é evitar a exposição direta ao sol e, crucialmente, manter o corpo e o ambiente frescos. Em comunidades como Detroit, Michigan, a utilização de ar-condicionado em espaços internos mostrou-se uma estratégia eficiente para mitigar os efeitos do superaquecimento durante os meses mais quentes. No entanto, este recurso essencial para a saúde se tornou um privilégio, inacessível para uma parcela considerável da população.
Dados de 2020, provenientes de uma pesquisa da Associação Americana de Informações Energéticas, uma agência governamental, revelam a extensão da insegurança energética nos Estados Unidos. Aproximadamente 34 milhões de residências experimentaram a incapacidade de custear suas necessidades básicas de energia, incluindo tanto o resfriamento quanto o aquecimento. Naquele ano, esse número representava cerca de 25% do total de lares do país. Jeffrey Elder sublinha a relevância de se ter acesso não apenas ao ar-condicionado, mas a um aparelho de boa qualidade e em pleno funcionamento, sem que ele opere aquém das expectativas de desempenho.
Mark Wolfe, economista do setor de energia e diretor-executivo da Associação Nacional de Diretores de Assistência à Energia dos Estados Unidos (Neada), que auxilia os estados em programas de assistência energética, destaca que a preocupação com os efeitos prolongados do calor em escala nacional é uma questão relativamente recente. Ele aponta que, há poucos anos, uma onda de calor se estendia por apenas um ou dois dias. Atualmente, entretanto, as pesquisas evidenciam que as ondas de calor em todo o mundo estão mais longas e intensas. Permanecer em um apartamento excessivamente quente por uma semana, segundo Wolfe, pode ser fatal, enquanto suportar um dia em tais condições era a realidade anterior. Essa mudança representa um perigo crescente para a saúde pública.
A pesquisa de 2020 também apontou que cerca de 25 milhões de famílias reportaram ter reduzido o consumo de alimentos ou medicamentos, ou mesmo ter deixado de adquiri-los, para conseguir pagar suas contas de energia. Adicionalmente, aproximadamente 12 milhões de residências, o que corresponde a uma em cada dez casas nos EUA, receberam avisos de desligamento de energia por inadimplência, evidenciando o quão difundido é o problema.
O impacto climático do próprio ar-condicionado é uma complexidade adicionada a este cenário. Os aparelhos de ar-condicionado são responsáveis por cerca de 3% das emissões globais de gases de efeito estufa. Contudo, paradoxalmente, eles se mostram como uma ferramenta crucial para proteger a população contra os crescentes índices de temperatura em todo o planeta. Essa dupla função leva à expectativa de um aumento ainda maior nas emissões relacionadas ao ar-condicionado no futuro, dada a urgência de seu uso. Especialistas indicam que a adoção de aparelhos mais eficientes, o investimento em energia elétrica proveniente de fontes renováveis e a implementação de projetos urbanos e melhorias nas edificações para enfrentar o calor são medidas essenciais que podem, em grande parte, conter o aumento dessas emissões.
A carga do gasto com energia é desproporcionalmente sentida pelas camadas mais pobres da sociedade norte-americana. Relatórios de 2020, como o divulgado pelo Conselho Americano para a Economia Eficiente de Energia, uma organização de pesquisa sem fins lucrativos, revelam que famílias de baixa renda chegam a destinar aproximadamente 10% de sua receita para despesas com energia, enquanto a média nacional dos americanos é de cerca de 6% de seus rendimentos. Tal disparidade força as famílias a tomarem decisões complexas sobre quando ou se devem utilizar o ar-condicionado, resultando frequentemente em experiências de vida sob desconforto e risco à saúde, mesmo quando o aparelho está disponível.
O calor extremo causa mais mortes anualmente nos Estados Unidos do que a soma de furacões, tornados e terremotos, conforme dados do Serviço Nacional do Clima do país. Entretanto, especialistas apontam que as informações sobre o impacto total do calor ainda são insuficientes. Mark Wolfe destaca a escassez de estudos que demonstrem de forma abrangente os efeitos do calor extremo sobre as comunidades americanas, e ainda menos pesquisas quantificam o número real de óbitos. Embora alguns estados e condados publiquem dados anuais sobre mortes relacionadas ao calor, esta prática não é universal. A ausência de uma classificação padronizada para doenças relacionadas ao calor nos hospitais, incluindo o Centro Médico Universitário New Orleans, complica o rastreamento, segundo Jeffrey Elder. Um paciente pode, por exemplo, ser diagnosticado com rabdomiólise após exposição ao calor, uma condição potencialmente fatal de rápida dissolução muscular, ilustrando como o calor extremo pode se manifestar em diversas classificações diagnósticas, dificultando a coleta de dados precisos sobre mortes diretamente atribuíveis.
Ainda que as lacunas nos dados existam, as pesquisas já indicam que o calor afeta a saúde de populações de baixa renda de maneira desproporcional. A segregação territorial histórica e a discriminação sistêmica direcionaram comunidades não-brancas para bairros com menos acesso à sombra de árvores, o que intensifica o calor local. O calor também agrava condições de saúde pré-existentes, como doenças cardíacas e diabetes, as quais possuem uma incidência mais elevada entre comunidades de baixa renda, negras e latinas, muitas vezes devido à falta de acesso adequado a serviços de saúde e alimentos nutritivos. Além disso, muitos trabalhos disponíveis para indivíduos de baixa renda, especialmente aqueles que exigem atividades ao ar livre, acarretam riscos adicionais, como evidenciado pela relação entre o calor e doenças renais crônnicas em trabalhadores expostos. Estudos também demonstram que o calor agrava problemas neurológicos, condições de saúde mental e afeta pessoas com dependência química. A população em situação de rua também apresenta uma probabilidade maior de óbito por calor e de desenvolver complicações de saúde permanentes após episódios de insolação.
O Calor, um Desafio Persistente
O calor extremo impacta a saúde das gestantes de forma preocupante. Uma investigação de 2023, realizada com mulheres grávidas atendidas em um hospital no sul da Califórnia, nos Estados Unidos, correlacionou a exposição das mães ao calor ambiente, tanto a curto quanto a longo prazo, com resultados mais adversos à saúde materna durante a internação para o parto. Paralelamente, o estudo apontou que mães que viviam em áreas com maior presença de árvores ou grama próximas às suas residências tinham menor probabilidade de desenvolver condições potencialmente fatais após a gestação, embora disparidades claras na saúde entre mães de diferentes níveis educacionais fossem notadas.
Karen Lusson, advogada do Centro Nacional de Direito do Consumidor, uma entidade sem fins lucrativos de Boston focada em direitos do consumidor para pessoas de baixa renda, salienta que este problema “não desaparecerá”. Ela recorda que os anos de 2023 e 2024 foram registrados como os mais quentes da história global. Agora, em 2025, o Serviço Nacional do Clima novamente prevê eventos de calor extremo e temperaturas acima da média, o que agrava a situação de vulnerabilidade.
Para residentes de baixa renda, a incapacidade de pagar a conta de eletricidade frequentemente impõe a dolorosa escolha entre alimentar a família ou ligar o ar-condicionado. Sherita Hamlin, mãe de cinco filhos que vive no oeste de Chicago, Illinois, relata os desafios diários que enfrenta. Durante o verão, quando as temperaturas da cidade podem ultrapassar 38 ºC, Hamlin se dedica a entreter os filhos, garantir acesso à internet para as aulas de verão e fornecer três refeições ao dia, enquanto simultaneamente tenta evitar o superaquecimento. Ela conta que, muitas vezes, é forçada a sacrificar produtos na mercearia, procurando cupons e promoções. Em momentos críticos, ela chegou a recorrer a bancos de alimentos e conseguir recursos para quitar a conta de energia necessária para o funcionamento do ar-condicionado, evidenciando as escolhas extremas que precisam ser feitas.

Imagem: bbc.com
Diana Hernández, socióloga e autora de diversos estudos sobre os gastos de energia por comunidades de baixa renda, observou diretamente as consequências de não poder pagar pelo ar-condicionado enquanto pesquisava para seu livro “Impotentes: a luta das pessoas pela energia”, lançado em 2025. Ela compartilha a história de uma mãe na Filadélfia, Pensilvânia, cuja filha sofria de eczema. Durante os meses de verão, o apartamento da família ficava tão quente que a condição de pele da criança piorava consideravelmente. Hernández narra que a menina “simplesmente coçava sua pele porque eles não tinham acesso a ar-condicionado”, e mesmo que tivessem, o custo de mantê-lo ligado seria proibitivo. A menina, na verdade, necessitava de um ambiente com conforto térmico, o que o calor extremo impedia. Pesquisas científicas corroboram que o eczema pode se agravar com a exposição crescente ao sol, umidade e altas temperaturas. Para Hernández, estas são “as pequenas, mas significativas indignações dessa experiência”.
Projeções em todo o território americano indicam que os custos para refrigerar as residências continuarão a aumentar, superando a taxa de inflação. Análises anuais conduzidas pela Neada e pelo Centro de Pobreza de Energia e Clima, uma organização de pesquisa nacional sem fins lucrativos, preveem que, em 2025, os consumidores nos Estados Unidos enfrentarão os maiores custos de energia para refrigeração dos últimos 12 anos. A projeção para a conta anual média de eletricidade no país é de 784 dólares (equivalente a cerca de 4,26 mil reais), o que representa um aumento de 6,2% em relação aos valores do ano anterior. Mesmo ajustando pela inflação, o aumento ainda seria de 4,3%, de acordo com as instituições.
Atualmente, os Estados Unidos não possuem uma política nacional que restrinja os desligamentos forçados de energia pelas concessionárias em residências incapazes de quitar suas contas. A abordagem para este problema é descentralizada, com cada Estado lidando com a questão de forma autônoma. No presente, 40 Estados americanos, além de Washington D.C., implementam políticas de proteção contra desligamentos durante o clima frio. No entanto, apenas 21 Estados e Washington D.C. mantêm políticas de proteção contra o desligamento em condições de calor extremo, o que sublinha uma lacuna na rede de segurança para muitas comunidades.
Para mitigar parte dessa situação, os Estados Unidos contam com um programa paliativo de nível nacional denominado Programa de Assistência Energética aos Lares de Baixa Renda (Liheap). Instituído pelo Congresso americano em 1981, este programa disponibiliza anualmente 4,1 bilhões de dólares (aproximadamente 22,3 bilhões de reais) para cerca de seis milhões de famílias que enfrentam dificuldades no pagamento de suas contas de eletricidade. O auxílio concedido pelo Liheap visa garantir que essas famílias consigam se refrescar no verão e se aquecer no inverno. Em sua maioria, os pagamentos são feitos diretamente às concessionárias de energia, assegurando a continuidade do fornecimento. Segundo o Instituto Elétrico Edison, uma associação que representa as companhias elétricas de propriedade de investidores americanos, a maior parte dos beneficiários do programa tem uma renda anual inferior a 20 mil dólares (o equivalente a cerca de 109 mil reais por ano ou 9 mil reais por mês).
Contudo, em abril do corrente ano, surgiu a notícia do desligamento de todos os funcionários do programa. No mês seguinte, o governo Donald Trump comunicou a intenção de encerrar o Liheap. O atual ciclo de financiamento do programa está previsto para se findar no outono do hemisfério norte. Essa medida gerou receios significativos entre ativistas comunitários, que alertam para consequências potencialmente desastrosas para uma vasta maioria de famílias em necessidade. Diana Hernández enfatiza que “a rede de segurança energética está ameaçada” e que “o acesso à energia salva vidas”.
Grace Wickerson, gerente da Federação de Cientistas Americanos, uma organização sem fins lucrativos focada em pesquisa de políticas, expressa a preocupação de que, sem o Liheap, caberá aos Estados decidir individualmente se oferecerão assistência a seus cidadãos em dificuldades financeiras para pagar contas de energia. Ela teme que esta situação possa levar a uma disparidade, onde estados tradicionalmente mais propensos a fornecer serviços governamentais, como os democratas, poderão agir, enquanto os republicanos talvez não o façam. Pesquisadores e ativistas avisam que, frente à intensidade do calor extremo, eventuais iniciativas estaduais seriam insuficientes para compensar a perda do financiamento federal caso o governo efetivamente encerre o programa Liheap.
Jaime Madrigano, epidemiologista ambiental e professor da Universidade Johns Hopkins em Baltimore, Maryland, estudioso da vulnerabilidade ao calor em Nova York e atualmente pesquisando hospitalizações relacionadas ao calor em Nova Orleans (uma cidade com altos índices de insegurança energética), alerta que “essas pessoas irão morrer se esses programas forem cortados”. Em 2024, Nova Orleans, em resposta aos desafios do calor, instituiu uma norma municipal que exige que os proprietários de imóveis alugados forneçam sistemas de refrigeração capazes de manter os quartos abaixo de 26,7 °C.
Emily Hilliard, porta-voz do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos (HHS), que administra o programa Liheap, informou que a Administração de Crianças e Famílias (ACF), sob a supervisão do HHS, cumpriu sua obrigação de liberar o montante de 4,1 bilhões de dólares (cerca de 22,3 bilhões de reais) previamente alocado para o Liheap no ano fiscal de 2025. Hilliard enfatizou que o Congresso americano é o responsável por determinar o orçamento para o ano fiscal de 2025-26, afirmando que “cabe ao Congresso decidir se e por qual valor o programa Liheap será financiado” e que o HHS “permanece comprometido com a administração eficaz dos recursos fornecidos pelo Congresso”.
Ainda de acordo com Hilliard, na ausência do Liheap, os Estados poderiam recorrer aos fundos da Assistência Temporária para Famílias Necessitadas (TANF) e do Fundo em Bloco para Serviços Sociais (SSBC) para oferecer assistência emergencial. No entanto, estes fundos atualmente são designados para prover às famílias de baixa renda acesso a serviços fundamentais como creches e educação primária. Hilliard informou que as propostas orçamentárias do HHS para ambos os programas no ano fiscal de 2026 são de aproximadamente 17,3 bilhões de dólares (cerca de 94 bilhões de reais) para o TANF e 1,7 bilhão de dólares (cerca de 9,2 bilhões de reais) para o SSBC, mantendo os mesmos valores alocados no ano anterior, segundo a organização sem fins lucrativos Assistência Infantil Consciente da América.
Em Chicago, Sherita Hamlin relembrou ter utilizado o Liheap em uma ocasião, no mês de agosto de 2018, para conseguir restabelecer sua eletricidade, que havia sido desligada devido à inadimplência. Naquela época, o programa concedeu a ela uma bolsa de emergência no valor de 780 dólares (equivalente a cerca de 4,2 mil reais). Atualmente, seu maior receio é o que poderá ocorrer com ela e com seus vizinhos se o programa federal for efetivamente descontinuado. Ela descreve a situação como “devastadora”, pois tem conhecimento de que “muitas famílias dependem dele”. Sherita reflete sobre o que ela mesma enfrentou e expressa a convicção de que as famílias “certamente precisarão sacrificar alguma coisa. Basicamente, as necessidades da vida”, o que pode gerar consequências profundas para o bem-estar e a segurança de milhões de pessoas em todo o país.
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Este panorama, que se agrava a cada ano com a intensificação dos fenômenos climáticos, revela um dilema premente: enquanto o ar-condicionado se torna vital para a sobrevivência em face de um calor cada vez mais insuportável, as barreiras econômicas e as incertezas políticas ameaçam privar milhões de americanos desse recurso fundamental, expondo a uma crise humanitária silenciosa as comunidades mais vulneráveis dos Estados Unidos.
Com informações de BBC News Brasil
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