📚 Continue Lendo
Mais artigos do nosso blog
Doença Rara Elimina o Medo: O Mistério da Ausência de Temor – A capacidade de não sentir medo, uma condição que desafia a compreensão humana sobre o instinto de sobrevivência, é o foco de estudos envolvendo pacientes com enfermidades extremamente incomuns. Recentemente, a experiência do britânico Jordy Cernik trouxe à tona os mistérios por trás da completa ausência de reações típicas de pavor, mesmo diante de situações consideradas perigosas.
A condição de Cernik, um residente do Reino Unido, surgiu após um tratamento médico. Ele teve as glândulas adrenais removidas como parte do combate à ansiedade intensa causada pela síndrome de Cushing, uma condição rara onde há produção excessiva de cortisol, conhecido como o hormônio do estresse. Apesar do sucesso em erradicar a ansiedade, um efeito inesperado se manifestou: a completa supressão da capacidade de sentir medo. Uma viagem à Disneylândia, nos Estados Unidos, em 2012, serviu como um marco revelador quando ele percebeu não sentir pavor em montanhas-russas. Subsequentemente, Cernik realizou atividades de alto risco, como saltar de um avião, praticar tirolesa em Newcastle, no Reino Unido, e descer de rapel o edifício Shard, em Londres, sem qualquer alteração detectável em seu batimento cardíaco ou pulso, demonstrando a inusitada falta de reação ao perigo.
Doença Rara Elimina o Medo: O Mistério da Ausência de Temor
Embora a vivência de Jordy Cernik seja particular, a ausência de medo não é um fenômeno totalmente isolado na medicina. Pessoas diagnosticadas com a doença de Urbach-Wiethe, também chamada de lipoidoproteinose, uma condição genética tão incomum que afeta apenas cerca de 400 indivíduos globalmente, compartilham essa peculiaridade. Uma das pacientes mais estudadas, identificada como S.M., tem sido objeto de investigação intensiva na Universidade de Iowa, nos Estados Unidos, desde meados da década de 1980, tornando-se um caso de referência para a neurociência.
No início dos anos 2000, Justin Feinstein, então um estudante de graduação, uniu-se à equipe de pesquisa com a missão de explorar maneiras de induzir medo em S.M. Hoje neuropsicólogo clínico no Coletivo de Pesquisa Float, onde estuda a terapia de estímulo ambiental reduzido por flutuação (REST) para tratar estresse, ansiedade e dor, Feinstein descreveu as tentativas de despertar o temor na paciente. Segundo ele, exibições de clássicos do cinema de terror como “A Bruxa de Blair” (1999), “Aracnofobia” (1990), “O Iluminado” (1980) e “O Silêncio dos Inocentes” (1991) não provocaram qualquer sinal de medo. Nem mesmo a visita ao temido Sanatório Waverly Hills, uma casa assombrada em Louisville, Kentucky, surtiu qualquer efeito na paciente.
Impacto em Reações a Ameaças Físicas
A pesquisa de Feinstein com S.M. estendeu-se para ameaças diretas da vida real. O neuropsicólogo revelou que, ao ser exposta a aranhas e cobras, a paciente não apenas demonstrou total ausência de medo, mas também exibiu uma curiosidade incomum, buscando interagir e tocar as criaturas. Este comportamento contrasta drasticamente com a reação natural de aversão e temor observada na maioria das pessoas.
A doença de Urbach-Wiethe é atribuída a uma mutação isolada no gene ECM1, localizado no cromossomo 1. Este gene é crucial para a produção de uma proteína que compõe a matriz extracelular (MEC), uma estrutura de suporte que organiza células e tecidos. Quando o ECM1 sofre danos, ocorre acúmulo de cálcio e colágeno, resultando em morte celular. A amígdala cerebelosa, uma pequena região cerebral com formato de amêndoa historicamente associada ao processamento do medo, mostra-se particularmente vulnerável a esse processo.
No caso singular de S.M., a destruição da amígdala pela doença de Urbach-Wiethe foi o evento que marcou o fim de sua capacidade de sentir medo. Feinstein enfatiza a especificidade dessa condição: “O impressionante é que [o efeito] é específico para o medo. Sua capacidade de processar outros tipos de emoções, em sua maioria, permanece intacta, seja alegria, raiva ou tristeza.” Contudo, o entendimento da amígdala e do medo é mais complexo, com o órgão cerebral desempenhando papéis distintos em variados tipos de temor.
Amígdala e Diferentes Mecanismos de Medo
A amígdala demonstra ser vital no condicionamento ao medo, conforme evidenciado em experimentos com roedores que associam choques elétricos a ruídos específicos. No entanto, S.M. não consegue desenvolver esse tipo de condicionamento, o que significa que, embora ela saiba racionalmente do perigo (como não tocar em uma assadeira quente), ela não manifesta as respostas fisiológicas associadas ao medo, como batimentos cardíacos acelerados ou surtos de adrenalina diante de estímulos associados à dor. A paciente também tem dificuldade em identificar expressões faciais de medo em outras pessoas, apesar de reconhecer alegria e tristeza. Além disso, sua extrema sociabilidade e a dificuldade em evitar situações de perigo a levaram a enfrentar ameaças com facas e armas de fogo em diversas ocasiões.
Feinstein observou que S.M. frequentemente interage com pessoas que normalmente seriam evitadas, e sua incapacidade de discernir a confiabilidade dos indivíduos gerou vários problemas em sua vida. Em um estudo específico, voluntários foram convidados a se aproximar de S.M. Sua distância de conforto preferida era de apenas 34 centímetros, aproximadamente metade da preferida por indivíduos sem a condição. O professor de psicologia Alexander Shackman, da Universidade de Maryland, nos EUA, ressaltou que pessoas com lesões nas amígdalas, como S.M., demonstram uma tolerância incomum a pessoas em seu espaço pessoal, um comportamento raramente observado em participantes saudáveis com amígdala intacta. Isso sugere que a amígdala desempenha um papel fundamental na organização de como interagimos com o mundo social e percebemos as ameaças interpessoais.

Imagem: bbc.com
Medo Interno Versus Medo Externo
Contudo, certos tipos de medo podem ocorrer independentemente da amígdala. Em uma pesquisa conduzida por Feinstein e sua equipe, S.M. e outros dois pacientes com lesões na amígdala foram instruídos a inspirar dióxido de carbono. Contrariando as expectativas dos cientistas, os três pacientes reagiram com pânico intenso. “No caso de S.M., aquilo ocasionou um completo ataque de pânico,” relatou Feinstein, “Foi o medo mais intenso que ela sentiu em toda a sua vida adulta.” Esse achado impulsionou uma década de estudos sobre a real função da amígdala no contexto do medo, revelando a existência de dois percursos cerebrais distintos para o temor, que dependem da origem da ameaça: externa ou interna.
Para ameaças externas, como um agressor se aproximando ou animais perigosos, a amígdala atua como um coordenador central, dirigindo outras áreas cerebrais e do corpo para orquestrar uma resposta. Recebe informações sensoriais (visão, olfato, paladar, audição) e, ao detectar uma ameaça, comunica-se com o hipotálamo, que, por sua vez, aciona a glândula pituitária. Esta, então, induz as glândulas adrenais a liberarem cortisol e adrenalina na corrente sanguínea. Esse processo resulta nos sintomas clássicos da reação de “lutar ou fugir”, como aumento da frequência cardíaca e pressão arterial, conforme explica Feinstein.
No entanto, a resposta a ameaças internas, como o aumento dos níveis de dióxido de carbono no sangue, é gerenciada de maneira diferente pelo cérebro, já que o corpo interpreta o excesso de CO₂ como um sinal de asfixia iminente devido à ausência de sensores de oxigênio no cérebro. A pesquisa de Feinstein indicou que o tronco encefálico, uma região cerebral responsável por funções corporais autônomas, como a respiração, detecta o aumento do CO₂ e inicia a sensação de pânico. Inesperadamente, a amígdala parece atuar como um freio a essa reação. Pacientes sem amígdala, como S.M., manifestam respostas inesperadas, mas a razão para esse comportamento da amígdala ainda é objeto de pesquisa. “É um resultado cientificamente muito significativo, pois ele nos ensina que a amígdala não é fundamental para todos os tipos e formas de medo, ansiedade e pânico”, observa Shackman.
A Importância Evolutiva do Medo e Suas Reflexões Modernas
A importância evolutiva do medo é inegável, dado que a amígdala está presente em todos os vertebrados e é um elemento crucial para a sobrevivência. “Quando você lesiona a amígdala e coloca o animal de volta no ambiente selvagem, ele normalmente irá morrer em questão de horas ou dias,” explica Feinstein, ressaltando que, sem essa capacidade de navegação segura no mundo exterior, os animais frequentemente se expõem a perigos mortais. Apesar da clareza dessa função protetora, a longevidade de S.M., que viveu por mais de meio século sem amígdala, mesmo diante de situações arriscadas, sugere uma perspectiva mais complexa.
Feinstein pondera sobre o papel do medo na vida contemporânea, especialmente em sociedades ocidentais onde muitas das necessidades básicas de sobrevivência são satisfeitas, mas onde ainda se observa altos níveis de estresse e ansiedade. “Uma das questões que chamam minha atenção no caso dela é que esta emoção primária de medo, na verdade, pode não ser necessária na vida moderna”, reflete. “Ela pode fazer mais mal do que bem”. Embora o caso de S.M. seja singular e os achados não sejam universalmente aplicáveis a todas as lesões cerebrais, sua história notável destaca a intrincada relação entre o cérebro, as emoções e a complexidade do instinto humano de autopreservação.
Confira também: crédito imobiliário
Esta análise aprofundada das condições que levam à ausência de medo revela aspectos cruciais sobre o funcionamento da mente humana e a complexidade do nosso sistema emocional. Para explorar outras matérias detalhadas e insights sobre a ciência do comportamento e temas variados, continue acompanhando nossa editoria de Análises.
Crédito, Getty Images
Recomendo
🔗 Links Úteis
Recursos externos recomendados