Dólar registra pior semestre em cinco décadas e gera questionamentos globais sobre sua hegemonia

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O primeiro semestre de 2025 marcou um período de desvalorização notável para o dólar americano, que apresentou seu desempenho mais fraco em mais de cinquenta anos no índice utilizado para mensurar sua robustez global. A desvalorização acumulada pela moeda dos Estados Unidos, medida pelo U.S. Dollar Index, alcançou 11% até o final de junho, conforme informações do Federal Reserve (Fed), o banco central americano. Este índice compara a divisa dos EUA com uma cesta composta por seis outras moedas de referência: o euro, o iene japonês, a libra esterlina, o dólar canadense, a coroa sueca e o franco suíço.

Embora quedas significativas não sejam um evento inédito na história da moeda americana, a atual depreciação coincide com um conjunto de fatores preocupantes para muitos economistas. Esta conjunção de elementos tem provocado um crescente ceticismo e levado um número cada vez maior de investidores, analistas financeiros e profissionais do setor bancário a reavaliar a estabilidade e a predominância do dólar no cenário internacional, conforme indicado por fontes do próprio mercado financeiro.

Entre os pontos de atenção está uma redução, embora ainda modesta, porém consistente, na participação da moeda americana nas reservas cambiais de bancos centrais ao redor do mundo. A isso somam-se a saída de capital estrangeiro do mercado de títulos do Tesouro dos Estados Unidos e críticas crescentes ao uso da hegemonia do dólar pelo governo americano como ferramenta para impor sanções em questões geopolíticas, de acordo com análises de diversos especialistas.

As políticas tarifárias em vigor sob a administração do presidente Donald Trump e especulações de mercado sobre uma possível manobra da Casa Branca para desvalorizar intencionalmente o dólar com o objetivo de fortalecer a indústria nacional americana também alimentam o debate. Contudo, enquanto uma parte dos observadores expressa inquietação, outra parcela permanece descrente tanto do interesse do mercado em buscar alternativas quanto da real capacidade de qualquer outra moeda de atingir o patamar de relevância global já conquistado pela divisa americana. O dólar firmou-se como moeda internacional após o término da Segunda Guerra Mundial, consolidado pelo acordo de Bretton Woods. Desde então, tornou-se a divisa mais empregada nas reservas globais e nas transações realizadas por meio do sistema Swift, uma rede de pagamentos que conecta 11 mil instituições financeiras em mais de 200 países.

Queda nas Reservas Cambiais Globais

Um relatório divulgado pelo banco J.P. Morgan no início de julho de 2025 destacou alguns dos elementos que representam um desafio ao atual domínio do dólar. O principal aspecto levantado relaciona-se diretamente com a diminuição da presença do dólar nas reservas internacionais, que constituem o total de ativos externos mantidos em moeda estrangeira por bancos centrais e autoridades monetárias para assegurar a estabilidade econômica e financeira de um país.

Em março de 2025, o montante global de reservas em moedas estrangeiras excedia a marca de 12 trilhões de dólares americanos, segundo dados do Fundo Monetário Internacional (FMI). Desse total, mais de 57% estava ainda investido em dólar, evidenciando sua posição dominante. No entanto, é relevante notar que, no início dos anos 2000, essa mesma proporção ultrapassava os 70%, indicando uma retração gradual.

Paralelamente à redução da participação do dólar, o volume de renminbis chineses nas reservas mundiais duplicou ao longo da última década. É fundamental, entretanto, observar que as reservas na moeda chinesa ainda representam somente 2% do total, posicionando-se consideravelmente atrás de divisas já consolidadas no cenário internacional, como o euro e a libra esterlina. Analistas sugerem que a principal inclinação de “desdolarização” das reservas cambiais está ligada ao crescimento da demanda por ouro, percebido como um substituto estável para as moedas globais.

Atualmente, o ouro corresponde a 9% das reservas de nações com mercados emergentes, configurando-se em mais do que o dobro dos 4% observados há uma década, refletindo uma busca por maior diversificação e segurança por parte dessas economias.

Desafios no Mercado de Commodities e Títulos do Tesouro

Outros aspectos que, conforme a análise do J.P. Morgan, sinalizam uma tendência de “desdolarização” incluem o uso crescente de outras moedas em transações comerciais internacionais e o decréscimo na fatia de participação estrangeira nos títulos de renda fixa de dívida pública emitidos pelo governo dos Estados Unidos.

No que concerne à moeda predominante em transações internacionais, diversas métricas são empregadas para aferir sua influência. E, em termos de volume de câmbio, faturamento comercial, denominação de passivos transfronteiriços (como dívidas e obrigações financeiras que países, empresas ou bancos mantêm com credores internacionais) e emissão de dívidas em moeda estrangeira, o dólar mantém uma posição de destaque. Entretanto, segundo especialistas do setor, a moeda americana tem perdido espaço como referência em mercados de commodities, com especial destaque para o setor energético.

Em decorrência das sanções econômicas internacionais impostas à Rússia, o país tem recorrido ao uso de moedas locais para viabilizar suas exportações de petróleo e derivados. Esta prática permitiu que nações como Índia, China, Brasil, Tailândia e Indonésia realizem a compra de petróleo a custos mais baixos, efetuando o pagamento nas próprias moedas nacionais, contornando a necessidade de transações em dólar.

No segmento dos títulos americanos, a participação de detentores estrangeiros tem demonstrado redução ao longo dos últimos 15 anos. Os títulos do Tesouro dos Estados Unidos, de forma semelhante aos emitidos por outras nações com economias sólidas, são tradicionalmente vistos como investimentos de refúgio. Estes são ativos procurados por muitos investidores para direcionar seu capital em momentos de turbulência nos mercados, como quedas abruptas nas bolsas de valores.

Ainda que investidores internacionais permaneçam como o maior componente do mercado de títulos do Tesouro americano, sua fatia vem diminuindo. Antes da grande crise financeira global de 2008, mais da metade (50%) dos títulos encontrava-se em posse de compradores de fora dos Estados Unidos. Atualmente, esse percentual regrediu para 30%, conforme os dados apresentados pelo J.P. Morgan.

“No âmbito das transações internacionais, observa-se uma redução bastante discreta na proporção do que ocorre em dólar”, explicou Luis Oganes, chefe de Pesquisa Macro Global do J.P. Morgan, em entrevista à BBC News Brasil. “Onde identificamos a desdolarização, e de fato um afastamento substancial do dólar, é nas reservas cambiais dos bancos centrais e na moeda utilizada nas transações de commodities.”

Desvalorização e Declínios em Bolsas Globais

Além das informações contidas no relatório, outros elementos que chamam a atenção são a desvalorização do dólar e as consecutivas quedas no mercado de ações dos Estados Unidos. Após registrar no primeiro semestre de 2024 sua maior depreciação até então desde 1973, os índices que monitoram o valor do dólar ensaiaram uma recuperação em meados de julho, mas voltaram a cair em agosto. De acordo com um relatório do banco Morgan Stanley, apesar de a moeda ter apresentado uma valorização de 3,2% em julho, a expectativa é que a tendência de queda prossiga, podendo acumular perdas adicionais de 10% até o encerramento de 2026.

Adicionalmente, no início de abril de 2025, as bolsas de valores americanas enfrentaram sua pior semana desde o início da pandemia de covid-19. O índice S&P 500 de Wall Street, que engloba as maiores companhias dos Estados Unidos, registrou uma queda de 10%. Na sequência, mercados acionários em todo o mundo sofreram reveses. No Brasil, por exemplo, o valor do dólar frente ao real caiu mais de 12% no mesmo período.

Todo este cenário desenrolou-se após uma série de anúncios do presidente Donald Trump relativos à implementação de uma onda inédita de tarifas de importação. Em abril, o líder republicano tornou pública sua intenção de aplicar uma tarifa universal e básica de 10% sobre todos os produtos importados pelos EUA. O prazo para a entrada em vigor dessa medida foi postergado em diversas ocasiões, e novas alíquotas foram posteriormente comunicadas para produtos específicos de alguns países. Entre as nações impactadas, o Brasil passou a enfrentar uma tarifa de 50% sobre certas categorias de produtos a partir de 6 de agosto.

Desde o primeiro anúncio, o “tarifaço” de Trump tem sido fonte de grande preocupação para investidores, que receiam seus possíveis impactos sobre os lucros corporativos e uma consequente desaceleração massiva do crescimento econômico global. Este panorama tem levado muitos a tentar se proteger de novas quedas no valor do dólar, diminuindo, consequentemente, a confiança na economia americana e em sua moeda, como apontam especialistas. Em resultado, investidores estrangeiros venderam 63 bilhões de dólares em ações de empresas listadas em bolsas dos EUA entre os meses de março e abril de 2025, de acordo com o banco Goldman Sachs. O mesmo comportamento foi observado no mercado de títulos, que funciona como um indicador da confiança na saúde econômica de um país. Períodos de intensa compra de títulos sinalizam confiança, ao passo que uma onda de vendas, como ocorreu nos Estados Unidos após os comunicados de Trump sobre as tarifas, sugere preocupação.

“Há um movimento de desvalorização e de aumento da desconfiança no dólar que foi agravado pelo presidente Donald Trump e as suas políticas erráticas e imprevisíveis em relação à política comercial americana”, avalia Fernanda Brandão, coordenadora do curso de Relações Internacionais da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Fatores Por Trás da Perda de Confiança

A imposição de novas tarifas pelo governo americano, contudo, não é o único elemento que, na percepção de especialistas, tem contribuído para a erosão da segurança na moeda americana.

Impacto das Sanções Geopolíticas

A maneira pela qual os Estados Unidos têm utilizado o dólar como ferramenta para sanções econômicas, em resposta a infrações na esfera geopolítica, é citada como um dos principais motores para a redução da confiança entre investidores. Robert McCauley, pesquisador sênior da Universidade de Boston, com experiência no Banco de Compensações Internacionais e no Federal Reserve de Nova York, observa que países, empresas, bancos ou indivíduos sujeitos a sanções americanas podem ser totalmente excluídos do sistema monetário financeiro internacional e da rede global de pagamentos, dependendo da severidade das medidas.

Este cenário se concretizou para a Rússia, por exemplo, após a invasão da Ucrânia. Outro caso mencionado, no meio de uma disputa política com os Estados Unidos, foi o do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, enquadrado na Lei Magnitsky, referente a violações de direitos humanos e práticas de corrupção. “As tarifas constituíram um choque adicional que se soma ao congelamento de ativos russos e à exclusão de alguns bancos russos da porção do dólar do sistema financeiro internacional”, aponta McCauley. Segundo o pesquisador da Universidade de Boston, tais práticas podem estar estimulando diversos agentes a buscar maneiras de contornar o uso do dólar, visando evitar situações semelhantes no futuro.

Os títulos do Tesouro americano mantêm há várias décadas “a base da pirâmide da estrutura das finanças internacionais”, sendo reconhecidos como os ativos de maior segurança, conforme detalha o especialista. No entanto, quando grandes detentores, como bancos ou investidores russos, têm seus ativos congelados, essa percepção de segurança é comprometida. “A suposição é de que os títulos do Tesouro dos EUA são o refúgio seguro quando as coisas ficam difíceis”, afirma McCauley. “Mas o fato de que um ativo de refúgio pode, de repente, se tornar um ativo sem valor para um grande detentor, é um choque. Isso faz os investidores pensarem com mais cuidado.”

Preocupações com Déficits Fiscais

Um ponto adicional em discussão é o acúmulo de déficits fiscais em países desenvolvidos nos anos recentes. No caso dos Estados Unidos, o país encerrou o ano de 2024 com uma dívida federal que totalizou 35,46 trilhões de dólares, uma quantia equivalente a 123% de seu Produto Interno Bruto (PIB), segundo dados do Tesouro americano. De acordo com Luis Oganes, existe entre os investidores o receio de que, no futuro, haja uma pressão para a desvalorização da moeda americana. Esta medida seria adotada para reduzir ou liquidar os déficits comerciais, visto que, para alguns economistas, uma moeda mais fraca tornaria as exportações americanas mais competitivas, uma vez que ficariam mais acessíveis para compradores estrangeiros.

Dólar registra pior semestre em cinco décadas e gera questionamentos globais sobre sua hegemonia - Imagem do artigo original

Imagem: bbc.com

“Existe uma percepção de que há necessidade de diversificar as moedas, particularmente em países de mercados emergentes. No passado, vimos nações enfrentarem adversidades quando a relação entre sua dívida e o PIB cresceu demasiadamente, o que poderia, eventualmente, conduzir a pressões sobre suas moedas para que se depreciassem, com o propósito de diminuir ou saldar o fardo da dívida”, explica Oganes. “Isso se combina com motivações geopolíticas, levando investidores de longo prazo a questionar a sensatez de manter sua alocação ao dólar ou se seria necessária uma mudança estrutural ou maior diversificação.”

Política de Juros do Federal Reserve

O pesquisador do J.P. Morgan adiciona ainda que há uma expectativa crescente de que o Federal Reserve (Fed) anuncie novos cortes nas taxas de juros nos próximos meses, o que pode diminuir ainda mais o atrativo do dólar para os investidores. Com taxas de juros reduzidas nos Estados Unidos, os rendimentos de títulos americanos declinam, impulsionando investidores a buscar oportunidades em países com juros mais elevados. Esta dinâmica aumenta a oferta de dólares no mercado e, consequentemente, contribui para a sua desvalorização.

O Fed geralmente adota a política de reduzir as taxas de juros quando a economia apresenta dificuldades e as eleva se o ritmo de alta dos preços começa a se acelerar em excesso. As autoridades do banco central americano têm sinalizado há um bom tempo a expectativa de realizar cortes nas taxas em algum ponto do ano em curso, seguindo os passos de outros bancos centrais, incluindo o do Reino Unido. No entanto, a redução foi postergada por um período significativamente mais longo do que o previsto, em parte devido às preocupações com os impactos das tarifas e de outras novas políticas da administração Trump, incluindo cortes de impostos, na economia. Há, igualmente, um crescente número de setores que acusam o presidente americano de ingerência nas decisões do banco central, um fator que pode também afastar investidores.

O presidente americano chegou a emitir ameaças de destituir o presidente do Fed, Jerome Powell, embora tenha afirmado recentemente que tal medida não era mais considerada necessária. Contudo, nesta semana, Trump anunciou sua intenção de demitir Lisa Cook, uma das diretoras do Fed e integrante do comitê de 12 membros responsável pela definição das taxas de juros nos EUA. Ele a acusa de fraude em um contrato imobiliário pessoal. Cook, cujo mandato está previsto para estender-se até 2038, contesta a ordem do presidente, alegando que ele não possui autoridade para tal, e recusa-se a pedir demissão. Seu advogado anunciou na terça-feira (26 de agosto) o ingresso de um processo judicial contra a determinação republicana, prenunciando uma prolongada disputa legal sobre o assunto. Trump também teceu críticas ao Fed por sua demora em reduzir as taxas de juros, sustentando que tal medida beneficiaria o governo ao economizar recursos no pagamento da dívida pública e impulsionaria o mercado imobiliário. Nos últimos meses, o presidente também minimizou as preocupações de que suas políticas tarifárias pudessem elevar os preços ou prejudicar o crescimento econômico do país.

BRICS e a Discussão da Desdolarização

Existe ainda uma perspectiva que sugere que a desconfiança em relação ao dólar é um fenômeno que antecede a maior parte das sanções recentes ou do anúncio do “tarifaço” e suas respectivas consequências. “Tudo começa nos anos de 2008 e 2009, quando uma crise financeira, com origem no mercado americano, arrasta a economia internacional para uma breve recessão e, desde então, impulsiona as nações desenvolvidas a um período de certa estagnação econômica”, ressalta Fernanda Brandão, da Universidade Mackenzie. “Essa crise se reveste de um simbolismo e importância porque destacou ou revelou as fragilidades intrínsecas à dependência do dólar como moeda global.”

De acordo com Brandão, a partir daquele momento, o cenário mundial adquiriu uma compreensão mais clara do fato de que qualquer instabilidade na economia dos Estados Unidos que venha a alterar as políticas monetárias implementadas pelo Federal Reserve e pela Casa Branca pode gerar “impactos que reverberarão em outras economias”. E, conforme a especialista, foi desse ponto de partida que surgiram os primeiros movimentos políticos articulados por nações em desenvolvimento, cujo objetivo era fomentar a desdolarização.

Atualmente, o bloco BRICS é considerado a força motriz principal dessa corrente. Até pouco tempo atrás, o grupo era composto por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, mas expandiu sua composição com a adesão de dez novos membros desde 2024. Para Fernanda Brandão, a experiência de muitas economias emergentes em sofrer as consequências da crise financeira de 2008, apesar de sua origem nos EUA, motivou o BRICS a adotar uma postura de desdolarização desde a sua formação. “A partir dali, tornou-se muito evidente a existência de uma vulnerabilidade causada pela dependência em relação ao dólar”, afirma Brandão.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva manifestou seu desejo de promover a desdolarização do comércio global durante a última cúpula do BRICS, realizada em julho de 2025 no Rio de Janeiro. “Penso que o mundo necessita encontrar um método para que nossas relações comerciais não precisem passar pelo dólar. Quando for o caso de negociar com os EUA, o dólar será utilizado. Quando for com a Argentina ou com a China, não é necessário. Quem definiu que o dólar seria a moeda padrão? Em qual fórum isso foi estabelecido?”, questionou Lula na ocasião. O presidente brasileiro também afirmou que a substituição do dólar no comércio internacional é “um movimento que não tem volta, e ocorrerá até ser consolidada”.

O bloco BRICS já tem ampliado a utilização de moedas nacionais de seus integrantes em trocas comerciais internas, com um enfoque especial no renminbi chinês. A Rússia, por sua vez, tem impulsionado a criação de uma plataforma digital de pagamentos própria, em uma tentativa de mitigar os impactos das sanções internacionais. O bloco também se encontra em discussões sobre a possível criação de uma moeda comum. Embora nenhum anúncio oficial tenha sido feito até o presente momento, as tratativas já foram interpretadas pelo governo americano como uma ameaça.

O presidente Trump já se pronunciou, declarando que o grupo é “um ataque ao dólar” e utilizou a participação da Índia no bloco como justificativa para impor tarifas mais elevadas sobre as exportações do país aos Estados Unidos. “Eles formam o BRICS, que é fundamentalmente um conjunto de países com postura anti-Estados Unidos”, disse o presidente americano no final de julho. “Trata-se de um ataque à moeda americana, e não permitiremos que ninguém atente contra ela.”

Estratégias Conflitantes de Trump Sobre o Dólar

No seio da administração Trump, parecem coexistir visões diversas e por vezes paradoxais sobre o que a primazia do dólar representa para os interesses políticos dos Estados Unidos, conforme analistas. Por um lado, por meio de suas declarações acerca do BRICS e das alternativas de pagamentos internacionais, Trump associa o papel global da moeda a um símbolo do nacionalismo americano e de sua doutrina “America first” (América em primeiro lugar).

Uma legislação aprovada em julho nos Estados Unidos, que visa regulamentar as “stablecoins” — criptomoedas cujo valor é atrelado ao dólar — parece alinhada a este plano. Essas moedas digitais são concebidas para manter paridade com a divisa americana e, assim, proporcionar maior estabilidade no ecossistema cripto. Economistas sugerem que essa medida poderia expandir ainda mais a influência da moeda americana no sistema financeiro global. Por outro lado, com sua política de tarifas, Trump arrisca minar o domínio do dólar, de acordo com Fernanda Brandão, do Mackenzie.

Circulam na imprensa e no mercado especulações de que este pode ser, precisamente, o objetivo do presidente, em sintonia com uma vertente dentro da Casa Branca que argumenta que a força da moeda americana estaria, de fato, obstruindo o avanço da indústria dos Estados Unidos, como indicado em um artigo recente do centro de estudos de relações internacionais Atlantic Council. Essa perspectiva é defendida, notadamente, por Stephen Miran, ex-presidente do Conselho de Assessores Econômicos do governo americano e recém-nomeado por Trump para o Conselho de Governadores do Fed. Em um artigo publicado em 2024, Miran sustenta que, em função de sua posição como moeda de reserva global, o dólar “está persistentemente supervalorizado”, o que culmina em desequilíbrios comerciais e prejudica os próprios cidadãos dos EUA.

A demanda mundial por dólares, sob este prisma argumentativo, eleva seu valor, encarecendo os bens fabricados nos Estados Unidos, o que, por sua vez, acarreta déficits comerciais contínuos e incentiva as empresas americanas a deslocalizar a produção para outros países, resultando na perda de postos de trabalho domésticos. Outros assessores de Trump também já endossaram a ideia de que um dólar menos forte poderia aumentar a competitividade das exportações americanas no mercado internacional, tornando-as mais baratas para os consumidores estrangeiros. Concomitantemente, produtos importados que entram nos Estados Unidos teriam seus preços majorados.

“Trump não deseja um dólar valorizado, pois isso intensifica as importações”, afirmou Gabriela Siller, diretora de análise econômica do grupo financeiro BASE, sediado no México, em junho, à BBC News Mundo, o serviço de notícias em espanhol da BBC. Uma teoria levanta a possibilidade de que Trump esteja articulando um plano com vários de seus conselheiros-chave — o denominado “Acordo de Mar-a-Lago”, que teria sido proposto por Miran — com o objetivo derradeiro de obrigar os parceiros comerciais dos EUA a desvalorizarem o dólar americano no mercado internacional, como aponta Anthony Zurcher, correspondente da BBC na América do Norte. Tal estratégia tornaria as exportações americanas mais acessíveis aos mercados externos e reduziria o valor das vultosas reservas de moeda americana detidas pela China.

Contudo, as proposições defendidas por Miran e outros consultores de Trump não encontram ampla aceitação entre uma parte dos economistas. “O plano de Miran, por mais engenhoso que possa parecer, baseia-se em um diagnóstico falho”, escreveu Kenneth Rogoff, professor de economia e políticas públicas da Universidade de Harvard, nos EUA, e ex-economista-chefe do Fundo Monetário Internacional (FMI). Embora a função do dólar como a principal moeda de reserva global desempenhe um papel relevante, o economista frisa que “este é apenas um entre diversos fatores que contribuem para os persistentes déficits comerciais dos EUA”. E, se o déficit comercial tem múltiplas origens, “a noção de que as tarifas possam servir como uma panaceia é, na melhor das hipóteses, questionável”, complementa Rogoff.

É vital enfatizar que, tecnicamente, o presidente não exerce controle direto sobre o valor do dólar em relação a outras moedas, dado que a taxa de câmbio opera em regime de flutuação livre. Washington não tem a prerrogativa de intervir diretamente para fazer a moeda valorizar ou desvalorizar, uma vez que seu preço é estabelecido por um vasto mercado global de divisas, sendo os grandes investidores os atores que compram ou vendem dólares em função de suas expectativas. Não obstante, a orientação da política econômica do governo dos EUA envia sinais ao mercado, influenciando assim a evolução do valor do dólar e outros elementos cruciais, como as taxas de juros.

O Dólar Ainda ‘Reina’?

Apesar dos recentes acontecimentos, grande parte dos analistas não interpreta estes eventos como um prenúncio do fim da hegemonia da moeda americana. Para alguns dos especialistas entrevistados pela BBC News Brasil, a declaração de que estamos testemunhando o declínio do dólar é “prematura”, conforme expressa Robert McCauley, da Universidade de Boston. Mesmo com uma retração observada em determinados setores, a moeda americana ainda exerce supremacia nas transações de comércio internacional. E, segundo a vasta maioria dos analistas, atualmente não há outra divisa com capacidade de assumir sua posição.

“A dolarização, provavelmente, irá continuar, mas o que a limitará, e a velocidade com que ela pode avançar, é o fato de que ‘para onde ir em alternativa’, certo? Não há muitas outras moedas líquidas ou países nos quais se possa investir facilmente ou que possuam um mercado de liquidez profunda”, pontua Luis Oganes. Nem mesmo o renminbi chinês, que tem apresentado crescimento em sua aceitação e utilização por vários bancos centrais para compor reservas, possui força suficiente neste momento para suplantar o dólar, conforme avaliado por especialistas.

Adicionalmente, os depósitos bancários em dólar americano cresceram em inúmeros mercados emergentes na última década, o que indica uma inclinação de busca pela moeda americana em momentos de instabilidade econômica. Há também quem defenda o argumento de que mesmo nações como Rússia e China, que ativamente promovem a discussão em torno da desdolarização, encontram obstáculos para se desvincular por completo do dólar americano.

“Impressiona-me a lentidão do processo de desdolarização na Rússia, mesmo diante da clara intenção governamental de reduzir sua dependência em relação ao dólar americano”, afirma Robert McCauley. “Acredito que isso se deve ao fato de o setor privado não se deixar persuadir facilmente a abandonar o uso do dólar como meio de empréstimo e transação, inclusive em detrimento da moeda nacional.” O especialista destaca, ainda, que a China não tem explorado todo o potencial de seus empréstimos ou projetos de infraestrutura em nações em desenvolvimento no âmbito da Iniciativa Cinturão e Rota para impulsionar alternativas à moeda americana. “As autoridades chinesas parecem satisfeitas em conceder empréstimos por meio do Banco de Exportação-Importação da China [China Eximbank] e do Banco de Desenvolvimento da China (CDB) para países africanos e asiáticos em dólar”, explica McCauley. “Existe uma excelente oportunidade para desdolarizar as contas externas da China, mas ela não tem sido aproveitada.”

Com informações de BBC News Brasil


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