Intervenções da CIA na América Latina: histórico secreto

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As intervenções da CIA na América Latina representam um capítulo duradouro na política externa dos Estados Unidos, com ações de bastidores moldando destinos políticos por décadas. Recentemente, a autorização do governo Donald Trump para que a Central de Inteligência Americana (CIA) buscasse influenciar a administração de Nicolás Maduro na Venezuela, presidente desde 2013 e sucessor de Hugo Chávez, evidenciou a continuidade dessas operações no continente.

Desde sua fundação em 1947, a CIA, como organização civil, esteve envolvida em coleta, processamento e análise de dados de segurança nacional ao redor do globo, frequentemente em caráter sigiloso. Particularmente durante a Guerra Fria, seus esforços visavam a contenção do socialismo e a neutralização de qualquer movimento que pudesse favorecer governos de esquerda. Conforme explica Rômulo Dias, historiador, jornalista e professor de política internacional no Espaço Zeitgeist, a agência nasceu na década de 1940 com o propósito de frear ideologias contrárias ao mundo ocidental. Enrique Natalino, jurista e cientista político do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), complementa que a contenção do comunismo era o pilar da política externa dos EUA para a região naquele período.

Intervenções da CIA na América Latina: histórico secreto

A percepção da atuação norte-americana no continente não é nova. Em um artigo publicado na revista chilena Vistazo em 1965, o jornalista Ernesto Solovera já argumentava que os Estados Unidos sempre procuraram intervir na América Latina, considerando a CIA mais poderosa que o próprio Departamento de Estado. Solovera descrevia uma sinergia de forças onde o poder econômico de Wall Street determinava ações, a CIA mobilizava seus agentes e o Pentágono executava invasões. Ironicamente, o artigo foi traduzido e arquivado pela própria agência, que ainda registrou que o material continha uma cronologia de supostas intervenções dos Estados Unidos na região entre 1831 e 1965.

Documentar a totalidade das interferências da CIA na América Latina é uma tarefa árdua, se não impossível, dada a natureza secreta dessas operações. Segundo o cientista político Leonardo Bandarra, pesquisador da Universidade de Duisburg-Essen, na Alemanha, muitas ações permanecem confidenciais indefinidamente e só se tornam públicas por desclassificação ou escândalos. Atualmente, sabe-se que a agência ofereceu suporte a diversos grupos políticos e governos estrangeiros, executando desde operações paramilitares, via Special Activities Center, até treinamentos, planejamentos e desenvolvimento técnico. O historiador Victor Missiato, pesquisador do Instituto Mackenzie, ressalta que o histórico de ações da CIA se deve ao combate ao comunismo e à defesa dos ideais americanos de democracia e liberdade, cujos documentos sigilosos do governo estadunidense geralmente são divulgados após um tempo variável.

No Brasil, a intervenção mais nítida ocorreu durante a chamada Operação Brother Sam, na qual os Estados Unidos chegaram a mobilizar um porta-aviões para apoiar o golpe que implantou a ditadura militar em 1964. Este evento é detalhado pela historiadora Heloisa Starling em seu livro “A Máquina do Golpe” (2024). Bandarra classifica a Brother Sam como uma das mais cruciais atuações da CIA no continente. Em 2024, pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP), em colaboração com a Comissão Nacional da Verdade, publicaram evidências que confirmam a ingerência americana na consolidação do regime autoritário brasileiro. Felipe Loureiro, professor na USP, destaca em artigo recente que, se concretizada, essa ajuda militar representaria a maior intervenção estrangeira na história latino-americana, embora a Brother Sam tenha sido desmobilizada antes de sua total concretização.

As informações sobre as atividades da CIA na América Latina, como observa Dolores Garcia, analista de inteligência da Grey Dynamics, provêm majoritariamente de documentos desclassificados pela própria instituição ou de escândalos tornados públicos. As operações em curso, portanto, dificilmente chegam ao conhecimento público. O uso da Justiça como instrumento de perseguição, conhecido como lawfare, é um exemplo contemporâneo no qual alguns creem na atuação da CIA contra governos que não se alinham aos interesses de Washington. Segundo Rômulo Dias, a discrição das ações da agência frequentemente impossibilita uma confirmação precisa do seu apoio em certos contextos. A própria CIA confirmou, por meio de seus documentos, o suporte a campanhas de repressão política por regimes autoritários, como a Operação Condor de 1975, descrita internamente como uma “cooperação de serviços de inteligência e segurança de vários países sul-americanos” para combater o terrorismo e a subversão na América do Sul.

Regime Militar no Brasil

Inúmeros historiadores analisaram o suporte do governo americano à instauração e manutenção da ditadura brasileira. Rômulo Dias esclarece que o combate ao comunismo pela CIA não era explícito, mas sim através de “operações encobertas, atos de sabotagens, campanhas psicológicas, apoios a grupos armados”. A atenção da agência na política brasileira intensificou-se com a presidência de João Goulart em 1961, devido às suas reformas propostas (limitação de lucros multinacionais, nacionalização de empresas) e sua recusa em romper relações com Cuba. A CIA financiou campanhas de parlamentares opositores a Goulart, bem como propagandas que desfavoreciam sua imagem. Há também indícios de intermediação da agência no financiamento de empresários dos EUA ao Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), uma organização anticomunista ativa de 1959 a 1963. A participação na Operação Brother Sam é um dos momentos-chave, onde o governo americano chegou a aprovar o envio de apoio militar ao golpe de 1964, um esforço que foi posteriormente abortado.

Guatemala, 1954: Um Modelo de Intervenção

Em 1954, a CIA orquestrou o golpe de Estado que depôs o governo democraticamente eleito e progressista de Jacobo Árbenz na Guatemala. Os Estados Unidos alegaram uma influência soviética, mesmo sem relações diplomáticas formais entre os países. Segundo o jornalista William Blum, autor de obras como “The CIA: A Forgotten History”, a intervenção foi motivada pela pressão da United Fruit Company, que se sentia prejudicada pelas políticas de reforma agrária de Árbenz, que haviam expropriado parte de suas terras. Blum descreveu essa operação como um modelo para futuras ações na América Latina, utilizando táticas como suborno de oficiais do exército local, investimento em campanhas em rádios e jornais contra o governo guatemalteco e intensa influência diplomática. A analista Dolores Garcia pontua que a agência atuava desestabilizando governos vistos como ameaças aos interesses dos EUA, pavimentando o caminho para golpes militares por meio de ações que provocavam respostas armadas, como a participação em protestos de esquerda ou o bombardeio de instituições.

Guiana Britânica (anos 1950) e a atuação da CIA

Ao longo da década de 1950, a CIA, em conjunto com o governo britânico, financiou grupos de oposição a Cheddi Jagan, figura política de orientação popular e progressista. Eleito administrador colonial em 1953, Jagan foi militarmente destituído pela Grã-Bretanha com o apoio da inteligência americana, que o via como um alinhado soviético. Apesar disso, ele retornaria como primeiro-ministro em 1961 e, mais tarde, seria presidente da Guiana independente em 1992.

Cuba: Um alvo persistente

Desde a Revolução Cubana de 1959, a CIA dedicou atenção constante à ilha, conforme narrado por William Blum, que afirma que a agência fez “tudo o que estava ao seu alcance” para minar o sucesso do governo de Fidel Castro. Isso incluiu sabotagem de bens destinados a Cuba, organização dos embargos comerciais impostos pelos EUA e até planejamento de assassinatos contra Castro e outras altas autoridades cubanas. O episódio mais famoso e visível foi a fracassada invasão da Baía dos Porcos em abril de 1961, onde um grupo paramilitar de exilados cubanos, treinado e liderado pela CIA e com apoio militar americano, tentou derrubar o governo de Castro.

Documentos desclassificados do National Security Archive revelam que o governo dos EUA aprovou um programa de apoio à oposição cubana já em outubro de 1959, dez meses após a revolução. Em dezembro do mesmo ano, um memorando de inteligência já classificava o regime de Castro como uma ditadura de extrema-esquerda. No mês seguinte, uma força-tarefa da CIA foi estabelecida para a derrubada do governo cubano. Em março de 1960, iniciou-se o treinamento de 300 guerrilheiros, com a criação de uma estação de rádio de longo alcance próxima à costa de Honduras.

Um “Programa de Ação Secreta Contra o Regime de Castro” foi aprovado em 17 de março no Salão Oval, delineando quatro frentes principais: formar um grupo opositor moderado no exílio; criar uma estação de rádio para transmissões a Cuba; estabelecer uma organização secreta de inteligência dentro da ilha, respondendo às ordens da oposição exilada; e treinar uma força paramilitar fora de Cuba para, em seguida, enviar quadros para organizar, treinar e liderar as forças de resistência recrutadas internamente. A agência treinou 1.297 guerrilheiros, em sua maioria cubanos residentes em Miami. A operação na Baía dos Porcos, entre 15 e 20 de abril de 1961, culminou na derrota dos invasores pelas forças cubanas. O historiador Michael Grow, em seu livro “U.S. Presidents and Latin American Interventions”, descreve a intervenção como “um fiasco, uma tragédia, uma derrota humilhante e um fracasso perfeito”, revelando a crença equivocada da CIA de que o plano derrubaria Fidel em poucas semanas. Victor Missiato classifica o caso cubano como “um dos mais drásticos” em termos de interferência e “um dos principais erros estratégicos militares americanos do século 20”.

Equador, Bolívia e Peru: desestabilização e apoio a golpes

As operações da CIA penetravam os mais altos níveis dos governos latino-americanos, quase todas as organizações políticas e até mesmo o controle financeiro de grupos, fornecendo à agência acesso a informações sensíveis, como detalha a analista Dolores Garcia. No Equador, Blum relata a infiltração da agência entre 1960 e 1963, criando meios de comunicação e organizando atentados atribuídos a grupos de esquerda para desestabilizar o governo socialista de José María Velasco Ibarra. Ele acabou deposto, e seu sucessor, Carlos Julio Arosemena Monroy, foi vítima de um golpe militar após romper relações diplomáticas com os EUA e declarar apoio a Cuba. O regime militar subsequente no Equador teve suporte técnico da CIA. No Peru, a agência treinou militares e intermediou o fornecimento de armamentos ao exército para combater guerrilhas esquerdistas no país. Na Bolívia, em 1964, a CIA financiou o militar de extrema-direita René Barrientos Ortuño, que presidiu o país de 1964 a 1965, após um golpe contra Victor Paz Estenssoro, conforme documentos desclassificados da agência.

Chile e Uruguai: Ditadura e Contenção

A participação da CIA no golpe que resultou na morte do presidente marxista Salvador Allende Grossens no Chile é um dos casos mais amplamente conhecidos e documentados. Em 1974, o jornal The New York Times já revelava essa interferência, publicando uma gravação do então Secretário de Estado Henry Kissinger afirmando que não havia motivo para “ficar parado assistindo a um país se tornar comunista devido à irresponsabilidade de seu próprio povo”. Missiato considera essa a “intervenção mais exitosa” americana, com apoio militar e logístico. Bandarra ressalta que a agência “não age do nada”, mas sim fortalece movimentos já existentes, como o golpismo militar no Chile e no Brasil. Natalino corrobora, indicando que o sucesso das operações se dava pela coordenação da agência de inteligência com “elementos internos desses países”.

Entre 1970 e 1973, a CIA teria investido milhões de dólares para deslegitimar o governo de Allende, pavimentando o caminho para o golpe e a ascensão do ditador Augusto Pinochet Ugarte, que governou por quase 17 anos com um regime autoritário. No Uruguai, durante a ditadura militar de 1973 a 1985, indícios apontam que a CIA atuou principalmente na criação de um escritório de segurança em Montevidéu e no treinamento de policiais, nos dez anos anteriores ao golpe, para a contenção de rebeldes e guerrilheiros de esquerda. A agência americana teria fornecido equipamentos e manuais aos militares uruguaios.

Argentina e República Dominicana: violações e desestabilização

A CIA manteve proximidade com o governo argentino durante a ditadura militar que perseguiu ativistas socialistas. A publicação canadense Geopolitical Monitor notou que, em 1976-1977, durante a gestão de Rafael Videla, enquanto a Argentina era internacionalmente condenada por violações de direitos humanos, Henry Kissinger “deu sinal verde” ao Ministro das Relações Exteriores Augusto Guzzetti na “luta” contra esquerdistas. A Geopolitical Monitor registra que “de 1975 a 1983, cerca de 30 mil civis acusados de subversão morreram ou desapareceram” no país.

Na República Dominicana, um memorando interno da CIA de 1973 investigou um “envolvimento bastante extenso” da agência em conspirações ligadas ao assassinato do ditador Rafael Trujillo Molina, que governou por 31 anos. O documento indica a intenção da CIA de “mudar” o governo do país. Quando o presidente Juan Emilio Bosch Gaviño assumiu em 1963, com pautas de reforma agrária, moradia popular e limitação de investimentos estrangeiros, ele foi deposto um ano depois, segundo Blum, com apoio da CIA. A agência investiu em propaganda para deslegitimar seu governo, e tropas americanas permaneceram no país até pelo menos 1966.

Garcia destaca que a CIA empregou uma vasta propaganda anticomunista através de jornais, rádio, filmes, panfletos, cartazes, folhetos e murais. Essas campanhas de intimidação visavam instilar medo, sobretudo em mulheres, usando imagens de tanques ou pelotões de fuzilamento soviéticos. Agências de notícias e emissoras de rádio controladas pela CIA também foram utilizadas para disseminar propaganda, por vezes, distribuindo informações falsas ou enganosas para desacreditar oponentes políticos de candidatos favoritos ou para minimizar abusos de direitos humanos por grupos apoiados pelos EUA. Uma análise abrangente sobre essas dinâmicas pode ser encontrada em relatórios do Conselho de Relações Exteriores, que contextualizam a política americana na região.

América para os Americanos: a Doutrina Monroe no Século XX

Para o historiador Victor Missiato, o histórico de intervenções da CIA reflete os objetivos da organização, fundada no pós-Segunda Guerra Mundial, e se alinha aos princípios da Doutrina Monroe de 1823. Naquela época, o então presidente James Monroe defendia a ideia da “América para os americanos”, criticando a interferência europeia e estabelecendo o fundamento da intervenção dos EUA no continente como freio a interesses externos. No século XX, Franklin Roosevelt atualizou essa premissa com sua “política da boa vizinhança”, onde a influência norte-americana se tornava onipresente via soft power.

Missiato resume que a CIA, criada em 1947, incorporou esses “valores históricos de impedir que as nações latino-americanas tivessem alguma corrente política contrárias às bases do que a sociedade americana acredita enquanto democracia, república e liberdade”. Rômulo Dias complementa que sempre existiu a intenção de “conter um inimigo que ‘ameaça’ o mundo ocidental”. Enrique Natalino avalia que o objetivo central da política externa norte-americana na região ao longo de todo o século XX foi manter os vínculos geopolíticos da América Latina com Washington.

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Este panorama detalhado das operações da Central de Inteligência na América Latina oferece uma perspectiva sobre como a agência atuou em diversos contextos políticos e sociais, moldando a história da região. Compreender o legado das intervenções da CIA é fundamental para analisar a formação das nações latino-americanas e suas relações com os Estados Unidos. Para aprofundar-se em questões geopolíticas e análises de impacto global, continue acompanhando nossa editoria de Política, onde abordamos os temas mais relevantes da atualidade.

Crédito da imagem: Carol M. Highsmith/ Library of Congress / Domínio Público


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