📚 Continue Lendo
Mais artigos do nosso blog
Intoxicação por Metanol: Falhas no Monitoramento de Bebidas
No Brasil, um preocupante surto de casos de **intoxicação por metanol** após o consumo de bebidas alcoólicas tem alertado as autoridades, trazendo à tona a discussão sobre a eficácia dos mecanismos de controle e fiscalização. Até a última segunda-feira, dia 6 de outubro, o Ministério da Saúde já havia recebido 217 notificações, demonstrando a gravidade e a abrangência da situação em diversas regiões do país, com a maioria dos incidentes concentrados no Estado de São Paulo.
Em resposta à crescente crise, governos estaduais e federais mobilizaram diversas frentes, incluindo polícia, agentes de saúde e outras equipes, para investigar e conter os casos. A Polícia Técnico-Científica de São Paulo, em investigações preliminares, confirmou a presença da substância tóxica em bebidas de pelo menos duas distribuidoras. Tragicamente, três mortes foram oficialmente associadas à intoxicação por metanol, sendo duas na capital paulista e uma no município de São Bernardo do Campo, na região metropolitana.
Intoxicação por Metanol: Falhas no Monitoramento de Bebidas
Uma das principais vertentes investigativas aponta para uma possível conexão com o mercado de falsificação de bebidas, prática criminosa que compromete a saúde pública. Em São Paulo, o governo liderado por Tarcísio de Freitas (Republicanos) estabeleceu um gabinete de crise para coordenar as ações de fiscalização. Operações de grande porte têm sido realizadas em festas universitárias, bares e adegas, resultando na apreensão de mais de 7 mil garrafas suspeitas e na prisão de 19 indivíduos envolvidos com as atividades ilícitas. Os dados são de 8 de outubro de 2025.
A crise de saúde revelou uma significativa lacuna no mercado brasileiro de bebidas alcoólicas: a ausência de um sistema robusto de rastreabilidade para esses produtos. Consequentemente, intensificaram-se as críticas à decisão do governo federal que, em 2016, durante a gestão Michel Temer, desativou o Sistema de Controle de Produção de Bebidas (Sicobe), que monitorava o fluxo de produtos diretamente das fabricantes, com foco inicial em cervejas e refrigerantes.
Recentemente, uma investigação da BBC News Brasil evidenciou a facilidade com que insumos para falsificação de bebidas – como garrafas, tampas, rótulos e selos aparentemente idênticos aos da Receita Federal – podem ser adquiridos em grupos de redes sociais, como o Facebook. Diante disso, o governo federal exigiu da Meta, controladora do Facebook, a remoção das publicações que facilitam tais operações ilegais. Essa situação levanta a crucial questão: um sistema de fiscalização mais abrangente, como o Sicobe, poderia ter evitado a atual onda de contaminações?
Complexidade na Fiscalização e o Papel dos Órgãos
A responsabilidade pela garantia da legalidade e qualidade das bebidas vendidas no Brasil é compartilhada por diversas esferas governamentais. No âmbito federal, o Ministério da Agricultura (Mapa) é o órgão responsável pelo registro e regulamentação do processo de produção de bebidas alcoólicas, além de realizar inspeções em fábricas e distribuidoras.
No nível estadual e municipal, as vigilâncias sanitárias desempenham um papel fundamental. Elas são encarregadas de visitar estabelecimentos para verificar a conformidade com as licenças de operação, as condições de armazenamento de alimentos, a higiene geral e outros requisitos sanitários. Complementarmente, os Procons, órgãos de defesa do consumidor, participam dessas ações, verificando informações de origem, composição, validade e preços dos produtos. Eles também orientam os comerciantes a adquirir produtos somente de fornecedores com CNPJ ativo e a sempre exigir a nota fiscal, como forma de inibir o comércio irregular.
Quando há suspeita de falsificação, as polícias civil e federal entram em cena para conduzir investigações, como ocorre no momento, com o objetivo de desmantelar redes criminosas e proteger a população.
O Mecanismo Atual de Rastreamento: Selos Físicos e Suas Limitações
Atualmente, o principal método de controle da circulação de bebidas alcoólicas no Brasil se dá por meio de selos emitidos pela Casa da Moeda e administrados pela Receita Federal. A função primordial desses selos é assegurar o recolhimento dos impostos devidos, e não diretamente a qualidade ou autenticidade do produto. A ausência do selo na tampa pode levar à apreensão da garrafa e à aplicação de multas à empresa. A emissão do selo para produtos nacionais é responsabilidade do fabricante, enquanto para importados, fica a cargo do importador.
A legislação vigente determina que os estabelecimentos devem registrar toda a movimentação de selos, incluindo os não utilizados ou devolvidos. Contudo, críticos apontam que esse sistema de selagem é insuficiente, pois os selos podem ser alvo de falsificação. A reportagem da BBC News Brasil, inclusive, documentou a oferta de mil selos por R$ 1,3 mil em um grupo do Facebook, evidenciando a vulnerabilidade do mecanismo.
O Fim do Sicobe: Custo e Controvérsias do Sistema Desativado
Implementado em 2008, durante o segundo mandato do presidente Lula, e em operação até o segundo semestre de 2016, o Sistema de Controle de Produção de Bebidas (Sicobe) era vinculado à Receita Federal e tinha como objetivo primordial o monitoramento da fabricação e origem dos produtos diretamente nas linhas de produção das fábricas. Sem foco na aferição de qualidade, sua principal finalidade era a cobrança de impostos, utilizando uma espécie de assinatura digital para rastrear individualmente cada bebida, contendo informações como fabricante, marca e data de fabricação.
Inicialmente concentrado em cervejas e refrigerantes, o Sicobe foi expandido em 2011 para abranger “outras bebidas”, como destilados, embora a Receita Federal mantivesse prioridade para os primeiros. O sistema, operado pela empresa Sicpa, gerava um custo de três centavos por unidade envasada, repassado à Casa da Moeda e que podia ser abatido de impostos destinados ao financiamento da seguridade social. A pesquisa de mestrado de Natalia Kirchner de Azevedo, defendida em 2016, concluiu que o Sicobe representava um custo elevado para as empresas, sendo, em última análise, repassado aos consumidores. Segundo o estudo, os abatimentos de impostos para cobrir esses custos totalizaram R$ 8 bilhões entre 2009 e 2016, uma média de R$ 1 bilhão por ano que deixou de ser arrecadado para a área social. No momento de sua desativação, o sistema abrangia cerca de 300 empresas.
A Receita Federal justificou a descontinuidade do Sicobe argumentando alto custo, estimado em cerca de R$ 2,5 bilhões anuais em valores corrigidos pelo IPCA, ou R$ 1,4 bilhão nominalmente em 2014. Para o órgão, os gastos eram “desproporcionais aos benefícios, representando aproximadamente 10 vezes mais que sistemas similares”. O órgão, questionado sobre alternativas, não se pronunciou.

Imagem: bbc.com
Contrariamente à visão da Receita, entidades como a Associação Brasileira de Combate à Falsificação (ABCF) e a Federação de Hotéis Restaurantes e Bares do Estado de São Paulo (Fhoresp) defendiam o sistema como um importante aliado no combate à sonegação fiscal. Entretanto, o governo federal destacou que a arrecadação do setor de bebidas aumentou de R$ 9,2 bilhões em 2016 para R$ 13,4 bilhões em 2024, mesmo após o Sicobe ter sido desativado.
Impasses e Denúncias de Corrupção Envolvendo o Sicobe
A tentativa de reativar o sistema de monitoramento de bebidas, impulsionada por um pedido do Tribunal de Contas da União (TCU), enfrentou resistência do governo federal em 2023, sob o atual presidente Lula. O impasse escalou ao Supremo Tribunal Federal (STF) para definir os limites de atuação do TCU sobre decisões institucionais.
A Receita Federal argumenta contra a reativação do sistema mencionando seu alto custo – equivalente à contratação de mais de 4 mil auditores fiscais – e possíveis vulnerabilidades, incluindo a marcação de produtos não contabilizados. Outra preocupação do órgão era o controle total do sistema por uma empresa privada, a Sicpa, o que poderia comprometer o sigilo de informações fiscais das empresas.
Adicionalmente, o Sicobe foi objeto de uma investigação da Polícia Federal em 2015, que desvendou uma suspeita de corrupção. Empregados da Casa da Moeda teriam tentado direcionar uma licitação em favor da Sicpa, com indícios de pagamentos de cerca de R$ 100 milhões em propinas a servidores da Receita e da Casa da Moeda. Um vice-presidente da empresa e um diretor da Receita Federal foram responsabilizados. A Sicpa firmou um acordo de leniência no valor de R$ 762 milhões, com base na Lei Anticorrupção, afirmando que a licitude da contratação foi atestada judicialmente em três instâncias e que sua responsabilidade objetiva foi assumida por atos de um consultor externo.
É o Rastreamento a Solução Definitiva?
Especialistas têm visões distintas sobre se um sistema de rastreamento resolveria efetivamente o problema da falsificação. Para Lucien Belmonte, presidente-executivo da Associação Brasileira da Indústria de Vidro (Abividro), o Sicobe tinha uma função mais fiscal, não necessariamente voltada para combater a adulteração. Ele defende uma fiscalização mais intensa sobre o uso e a destinação de garrafas, sugerindo que a venda de vasilhames para adulteração seja enquadrada como crime. Além disso, menciona um projeto de lei no Congresso para tornar o crime de adulteração de alimentos (incluindo bebidas) hediondo, elevando as penas e eliminando a possibilidade de fiança.
Por outro lado, Sérgio Pereira da Silva, vice-presidente da ABCF, argumenta que a rastreabilidade é crucial para melhorar a fiscalização e identificar produtos falsificados nas prateleiras, dada a crescente sofisticação dos criminosos. Ele critica a insuficiência dos selos atuais, que podem ser facilmente replicados, e acredita que os custos de um sistema robusto de rastreamento seriam compensados por um aumento na arrecadação de impostos, sem ônus para o governo. A pirataria se torna financeiramente atraente quando garrafas usadas são desviadas para o mercado paralelo em vez de reciclagem.
Nívio Nascimento, pesquisador-sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), corrobora a necessidade de formas mais robustas de rastreamento, mesmo que não seja o mesmo Sicobe, para combater os ilícitos no setor. Ele enfatiza que a ausência de controle resulta em maior circulação e, consequentemente, em mais oportunidades para adulteração e falsificação.
Exemplo da República Dominicana e a Proposta de Modernização
A República Dominicana serve como um exemplo de ação contra bebidas adulteradas, após um surto de contaminação por metanol em 2021. O país modernizou seu sistema, substituindo os selos físicos por códigos QR nas embalagens – um mecanismo similar ao proposto pela mesma empresa, a Sicpa, que operava o Sicobe no Brasil. O resultado foi positivo: em 2023, o Ministério da Saúde da República Dominicana não documentou mais nenhum caso de contaminação por metanol em bebidas.
Bruno Queiroga, CEO da Sicpa América do Sul, destaca a falta de identificação única das bebidas como o principal entrave para a investigação de contaminações como a atual. A empresa apresentou uma proposta de modernização do sistema de rastreamento tanto ao governo Bolsonaro quanto ao governo Lula, que ainda não obteve resposta. O novo sistema prevê a verificação da origem do produto por qualquer cidadão via smartphone, lendo um código aplicado com tinta de segurança na tampa da garrafa. Queiroga rebate as críticas de custos do antigo Sicobe, afirmando que o valor de R$ 0,03 por garrafa se mantém desde 2009 e poderia ser repassado à própria indústria, como ocorre em outros países. Além disso, sugeriu que a Receita Federal poderia especificar os elementos a serem removidos ou modernizados para otimizar os custos.
Confira também: crédito imobiliário
A recorrência dos casos de intoxicação por metanol evidencia a urgência de uma solução efetiva para o monitoramento e fiscalização das bebidas alcoólicas no Brasil. A discussão entre reativar um sistema robusto, aprimorar a fiscalização ou adotar novas tecnologias como o QR Code permanece central para proteger a saúde pública e combater a ilegalidade. Para mais análises aprofundadas sobre desafios em políticas públicas e seus impactos na sociedade, continue acompanhando nossa editoria de análises.
Crédito, Getty Images
Recomendo
🔗 Links Úteis
Recursos externos recomendados