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O escândalo do metanol no vinho italiano em 1986 deixou um rastro de mais de 20 mortos e centenas de hospitalizados, chocando a nação e redefinindo para sempre o futuro da vinicultura no país. A crise abalou a reputação dos vinhos italianos globalmente, mas, surpreendentemente, serviu como catalisador para uma transformação sem precedentes que elevou os padrões de qualidade e segurança do setor.
Naquela época, a Itália se destacava como uma das maiores produtoras de vinho do mundo, ostentando milhares de hectares de vinhedos e uma produção anual superior a 70 milhões de hectolitros. Contudo, o cenário era de excedente de estoques e forte concorrência interna, o que forçava a redução dos preços. Muitos pequenos produtores e comerciantes, especialmente nas regiões do norte do país, recorreram a métodos ilegais para aumentar o teor alcoólico de vinhos de baixo custo, abrindo caminho para práticas ilícitas de adulteração. O metanol, uma substância altamente tóxica, tornou-se o aditivo clandestino escolhido.
Itália Supera Crise do Metanol no Vinho e Reinventa Mercado
Os primeiros sinais da tragédia surgiram em março de 1986, quando a província de Asti, no Piemonte – uma área célebre pela vinicultura –, registrou os primeiros casos de envenenamento. Duas pessoas faleceram e várias foram internadas após o consumo de um vinho de mesa local. A investigação subsequente revelou a adição de metanol aos vinhos por alguns comerciantes. Milena Lambri, pesquisadora em enologia e segurança alimentar na Universidade Católica do Sagrado Coração, aponta que a vinicultura italiana estava em um estágio inicial de pesquisa sobre qualidade, o que levou produtores despreparados a usar o metanol para aumentar o teor alcoólico e competitividade de seus produtos.
O chamado “escândalo do vinho” rapidamente revelou uma adulteração em vasta escala, comprometendo centenas de milhares de litros da bebida. O Ministério da Saúde italiano agiu prontamente, ordenando o recolhimento imediato de garrafas suspeitas. Em poucos dias, impressionantes 25 milhões de litros de vinho adulterado foram confiscados. As análises de algumas amostras revelaram a presença de metanol em concentrações até 20 vezes acima do limite permitido. As investigações centraram-se inicialmente em duas empresas do Piemonte, consideradas os principais focos de adulteração, mas logo expuseram uma extensa rede de comerciantes intermediários que compravam vinho a granel, o adulteravam e o revendiam sob rótulos genéricos.
As repercussões do incidente transcenderam as fronteiras italianas. Países importadores, como Suíça, Alemanha, França e Bélgica, também apreenderam lotes de vinhos italianos contaminados. As exportações da Itália foram suspensas temporariamente e governos de várias nações emitiram alertas contra o consumo de vinhos provenientes do país. Milhões de litros da bebida foram descartados como lixo industrial em toda a Europa, em uma ação conjunta para conter a crise. As investigações criminais envolveram mais de 60 empresas vinícolas, resultando na acusação formal de mais de 40 indivíduos, muitos dos quais foram condenados.
O julgamento principal foi concluído apenas em 1993, com sentenças que variavam de 2 a 14 anos de prisão, embora os réus não tenham cumprido as penas iniciais devido a recursos. Processos por indenização movidos por vítimas e famílias contra os produtores se estenderam por mais de duas décadas, mas, no fim, nenhuma compensação foi paga, pois os réus foram considerados financeiramente incapazes de arcar com os valores. Semelhante ao que ocorre no Brasil atualmente com intoxicações por bebidas adulteradas, o caso italiano de metanol no vinho abalou profundamente a confiança dos consumidores.
Até mesmo os produtores de vinhos finos, que não tiveram envolvimento direto com o escândalo, sofreram severamente. No final de 1986, o mercado italiano de vinhos acumulava perdas equivalentes a 1 trilhão de liras, com uma queda de 20% no valor geral do setor. As exportações despencaram mais de 40%, e as vendas internas desabaram em 70%. Diante de um cenário desolador, o setor vitivinícola italiano se viu na necessidade de uma drástica “virada de chave”, abandonando a prioridade pela quantidade em prol da excelência.
Especialistas consideram que o escândalo do metanol no vinho foi a maior oportunidade de reestruturação para o mercado italiano. Milena Lambri destaca que “os produtores mudaram completamente a forma de fazer vinicultura e enologia, começando pelo campo e pelo solo, monitorando o clima, o crescimento das plantas, o manejo da viticultura, trabalhando com fertilização e o manejo da copa”. Investimentos massivos em conhecimento e pesquisa foram implementados. Gaetano Cataldo, sommelier e consultor do mercado de vinhos italiano, reforça que “a Itália aprendeu uma lição muito dura com essa tragédia. Mas se recuperou, criando um renascimento do vinho e elevando sua qualidade. Hoje, os controles de qualidade permanecem rigorosos, mas as vinícolas italianas estão cada vez mais buscando a excelência”.

Imagem: bbc.com
O episódio também impulsionou uma modernização institucional sem precedentes. Uma legislação de 1992 se tornou um marco na regulamentação das denominações de origem, estabelecendo critérios claros e rigorosos para a produção e comercialização de vinhos com selo de procedência. Com isso, os vinhos passaram a ser meticulosamente classificados por tipo de uva, origem, métodos de cultivo e teor alcoólico, facilitando a identificação da qualidade para os consumidores. A implementação dessa lei veio acompanhada de um sistema rigoroso de controle e fiscalização, com a criação de comitês nacionais e regionais de supervisão. Segundo Gaetano Cataldo, “o sistema também ajudou com a rastreabilidade e, graças a ele, hoje é possível checar toda a cadeia de produção de um vinho”, o que garante a autenticidade e a segurança do produto final.
Milena Lambri explica que essa transformação atuou como uma “seleção de qualidade”, onde apenas os produtores mais dedicados à excelência e à inovação na cultura do vinho sobreviveram. Embora o país precise seguir as regulamentações europeias, suas próprias leis são, na verdade, mais rigorosas. A pesquisadora afirma que “o mercado de vinhos italiano tem provavelmente a regulamentação mais rigorosa do mundo atualmente”. O resultado é um país que, apesar de exportar menos que nos anos 80, tem uma produção focada em vinhos finos, disputando com a França o título de maior produtor global, com 44 milhões de hectolitros em 2024. A confiança dos consumidores foi plenamente restaurada, e os italianos estão hoje entre as nações que mais bebem vinho, com um consumo per capita de cerca de 42 litros por ano, contrastando com os 2,1 litros do Brasil no mesmo período.
O Brasil, que atualmente enfrenta um aumento nos casos de intoxicação por metanol – 41 casos confirmados e 8 mortes até 15 de outubro, segundo o Ministério da Saúde – pode extrair importantes lições da experiência italiana. No contexto brasileiro, as investigações da Receita Federal, Polícia Federal, ANP e Ministério da Agricultura apontam para o uso clandestino de metanol na produção de bebidas destiladas, como cachaça, aguardente e uísque. A substância, destinada a indústrias químicas e desviada para combustíveis, acabou adulterando o setor alcoólico. Apesar das diferenças nas bebidas envolvidas, Gaetano Cataldo ressalta a importância de “permanecer vigilante” e informar a população para minimizar as consequências. O sommelier sugere que o Brasil poderia se beneficiar de um sistema de rastreabilidade mais rígido, similar ao da Itália, e enfatiza a necessidade de educar as pessoas a beberem conscientemente e com responsabilidade, para que a reputação do país não seja prejudicada por “apenas alguns criminosos”.
Milena Lambri corrobora, afirmando que o fortalecimento do cumprimento das normas é crucial. Ela destaca que os consumidores estão cada vez mais informados e atentos à qualidade e origem dos produtos, uma tendência intensificada pela internet. Essa maior conscientização dos consumidores naturalmente impõe maior responsabilidade aos fabricantes. Assim, o caminho para o Brasil, segundo os especialistas, passa pela valorização da qualidade, rigor na fiscalização e um compromisso com a transparência em toda a cadeia de produção de bebidas alcoólicas.
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A experiência da Itália com o metanol serve como um poderoso lembrete da resiliência de um setor e da importância da constante busca por excelência e segurança alimentar. Conhecer essa história é fundamental para compreender a complexidade da economia global e como crises podem ser convertidas em oportunidades de crescimento. Para mais notícias e análises sobre o cenário econômico, continue explorando a editoria de Economia do Hora de Começar.
Crédito, Gamma-Rapho via Getty Images
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