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Na Faixa de Gaza, onde a rotina se define pela urgência do conflito e pela escassez de recursos, jornalistas locais enfrentam condições extremas e perigos iminentes para documentar os acontecimentos diários. Longe dos estúdios ou escritórios tradicionais, esses profissionais montam seus postos de trabalho em tendas improvisadas, frequentemente localizadas nas proximidades de hospitais, buscando acesso a eletricidade e conectividade em uma região com infraestrutura crítica.
A vida e o trabalho desses repórteres estão marcados pela privação e pelo risco. Abdullah Miqdad, um dos jornalistas na região, descreve a experiência de trabalhar em uma tenda de tecido e plástico como “morar em uma estufa no verão e uma geladeira no inverno”, ressaltando a carência das necessidades humanas mais básicas, incluindo água e um banheiro adequado. A ausência de energia elétrica contínua na Faixa de Gaza torna a proximidade com os hospitais essencial, pois os geradores desses estabelecimentos são as únicas fontes de energia confiáveis, mesmo que limitadas apenas para carregar celulares e equipamentos.
A Barreira de Acesso e a Dependência de Talentos Locais
O cenário é ainda mais complexo pela restrição imposta por Israel, que impede a entrada de empresas de mídia estrangeiras, incluindo a BBC, em Gaza, salvo em raras exceções onde jornalistas acompanham tropas israelenses. Essa política coloca os repórteres locais como a espinha dorsal da cobertura jornalística internacional. São eles que assumem a árdua tarefa de percorrer o território, enfrentando dificuldades e perigos para coletar informações, vídeos e imagens. Muitas vezes, a transmissão desse material só é possível ao retornarem às tendas equipadas perto dos hospitais, onde o acesso à eletricidade e à internet se faz presente.
A localização estratégica perto de hospitais, embora vital para a logística e a agilidade na apuração, expõe os jornalistas a um risco elevado. Haneen Hamdouna, do veículo palestino Donia Al-Watan e colaboradora de empresas internacionais, destaca que essa proximidade permite um “acesso direto para cobrir feridos, mortos, funerais e entrevistas”, uma vez que a movimentação e as tentativas de comunicação para obter tais informações em outras áreas são “quase impossíveis”. Contudo, nem a escolha estratégica nem o status profissional, que teoricamente conferiria proteção pelo direito internacional, têm garantido a segurança desses profissionais.
Número Alarmante de Vítimas e a Sensação de Serem Alvos
Desde o início da Guerra Israel-Gaza, em outubro de 2023, o número de jornalistas e profissionais da mídia mortos atingiu uma escala sem precedentes. Dados do Comitê para a Proteção dos Jornalistas (CPJ) indicam que, até 26 de agosto, pelo menos 197 profissionais foram vítimas fatais, sendo 189 deles apenas em Gaza. Essa cifra supera o total global de jornalistas mortos nos três anos anteriores combinados. Ahed Farwana, secretário do Sindicato dos Jornalistas Palestinos, expressa um sentimento comum entre os colegas: “Como jornalistas, sentimos que somos constantemente alvos das forças de ocupação israelenses, o que nos deixa em um estado de medo constante por nossa própria segurança e a de nossas famílias.”
Israel tem consistentemente negado alvejar jornalistas, porém, em uma ocasião, admitiu responsabilidade pela morte do correspondente da Al Jazeera, Anas Al-Sharif, e outros cinco jornalistas em sua tenda em Gaza em 10 de agosto. O exército israelense justificou o ataque afirmando que Sharif “havia servido como chefe de uma célula terrorista no Hamas”, uma acusação que o jornalista negava e para a qual o CPJ declarou que Israel não apresentou provas. Jodie Ginsberg, diretora-geral do CPJ, pontua que esse é um “padrão que observamos em Israel […] em que, tipicamente, um jornalista é morto pelas forças israelenses e, posteriormente, Israel afirma que ele era terrorista, mas fornece pouquíssimas provas para sustentar essas alegações”.
Recentemente, em 25 de agosto, cinco jornalistas que trabalhavam para a imprensa internacional estavam entre as mais de 20 pessoas mortas em um duplo ataque israelense ao hospital Nasser, localizado em Khan Younis, no sul de Gaza. O primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, descreveu o ocorrido como um “trágico acidente” e afirmou que as autoridades militares estavam conduzindo uma investigação. O exército israelense, por sua vez, declarou fazer “todos os esforços para mitigar os danos aos civis”, ao mesmo tempo em que garantiu a segurança de suas tropas e acusou o Hamas de ter “criado condições de combate impossíveis”. Husam al-Masri, Mariam Abu Dagga, Ahmed Abu Aziz, Mohammad Salama e Moaz Abu Taha foram identificados como alguns dos jornalistas mortos nesse ataque.
A Exaustão da Cobertura Contínua e a Ascensão de Novatos
Quase dois anos após o início dos confrontos em outubro de 2023, os jornalistas em Gaza lidam com um cenário de constante ameaça, fome, medo e deslocamentos forçados. Apesar da exaustão causada pelo trabalho ininterrupto e da demanda contínua por cobertura jornalística, a resiliência profissional prevalece. A urgência da informação levou à abertura de portas para jovens em Gaza, alguns sem experiência prévia em jornalismo, que se tornaram repórteres e fotojornalistas. Embora alguns atuem em regime de exclusividade com veículos locais ou internacionais, muitos operam sob contratos temporários ou por coberturas específicas, o que se traduz em instabilidade laboral e em uma variação significativa no nível de proteção, seguro e recursos disponíveis. Ghada Al-Kurd, correspondente da revista alemã Der Spiegel e colaboradora de outras organizações internacionais, incluindo a BBC, expressa a preocupação: “Todo jornalista no mundo tem o dever de cobrir notícias e o direito de desfrutar de proteção internacional. Infelizmente, o exército israelense não trata jornalistas dessa maneira, especialmente quando se trata de jornalistas palestinos.”
A Sombra da Fome e o Sofrimento Silencioso

Imagem: bbc.com
As dificuldades não se restringem apenas aos perigos diretos da guerra. A Faixa de Gaza enfrenta uma grave crise alimentar, confirmada em 22 de agosto por um órgão apoiado pela ONU, responsável pelo monitoramento da segurança alimentar, que oficialmente declarou a existência de fome na Cidade de Gaza. A região foi classificada na Fase 5 da Classificação Integrada de Segurança Alimentar (IPC), o nível mais alto, que aponta para insegurança alimentar aguda, “miséria e morte” para mais de 500 mil pessoas. Um relatório da ONU de julho já indicava que mais de um terço da população em Gaza (39%) passa “dias seguidos sem comer”.
Os jornalistas não estão imunes a essa fome extrema. Ahmed Jalal, jornalista independente, compartilha a realidade: “Uma xícara de café com grão-de-bico moído ou um copo de chá sem açúcar pode ser tudo o que você consegue consumir durante um dia inteiro de trabalho”. Ele relata as dores de cabeça intensas e a fadiga debilitante que enfrenta “em muitos dias”, descrevendo-se “incapaz de andar de tanta fome”, mas ressalta que continuam com seu trabalho, percorrendo “longas distâncias para cobrir as notícias, carregar nossos equipamentos ou encontrar uma conexão de internet para levar a história para além dos muros de Gaza”. Ahmed Jalal, além disso, teve que se deslocar diversas vezes com sua família, mas manteve sua atividade jornalística enquanto buscava abrigo, água e alimento para eles. A preocupação com seu filho, que necessita de cirurgia e está privado de tratamento devido às condições da guerra, torna a cobertura da dor infantil ainda mais excruciante para ele, mas também, paradoxalmente, mais autêntica.
Cicatrizes Invisíveis: O Impacto Psicológico Profundo
O bombardeio de Gaza impõe um ônus psicológico pesado. Abdullah Miqdad questiona a incerteza constante: “Quando você trabalha dentro de uma barraca, nunca sabe o que pode acontecer a qualquer momento. Sua barraca ou seus arredores podem ser bombardeados — o que você faz então?”. A necessidade de permanecer vigilante e a ausência de respostas para os inúmeros questionamentos sobre a própria segurança consomem os jornalistas mentalmente, exigindo foco e perspicácia mesmo diante da exaustão.
A experiência prolongada de cobrir morte e fome afeta a capacidade dos jornalistas de processar suas próprias emoções. Ghada Al-Kurd revela: “Não temos tempo para pensar em nossos sentimentos. Durante esta guerra, perdemos a capacidade de expressar nossas emoções. Estamos em constante estado de choque. Talvez recuperemos essa capacidade após o fim da guerra.” Ghada, que também lida com o desaparecimento de seu irmão e sua família sob os escombros desde o início do conflito, descreve o esforço para reprimir o medo pelas suas duas filhas. A percepção generalizada é de que a guerra transformou mentes e personalidades, necessitando “um longo período de cura” para retornar a uma normalidade pré-7 de outubro de 2023.
Ahmed Jalal ecoa essa dor ao cobrir a morte de colegas, admitindo o pensamento de que ele mesmo “pode ser o próximo”. Essa angústia interna, embora “consuma por dentro”, é camuflada perante a câmera para que o trabalho continue. Sentimentos de “sufocamento, exaustão, fome, cansaço, assustado” se acumulam sem chance de descanso. Em meio a esse panorama desolador, o Centro de Mídia Solidário figura como uma das tendas essenciais para a moradia e o trabalho dos jornalistas.
Apelo Internacional por Acesso e Proteção
Diante do quadro alarmante, 27 países, incluindo potências como Reino Unido, França, Alemanha, Austrália e Japão, emitiram uma declaração conjunta em apoio a um apelo global. Essa declaração, divulgada pela Coalizão pela Liberdade de Mídia – um grupo intergovernamental focado na defesa dos direitos e da proteção dos jornalistas em todo o mundo – condenou os ataques aos profissionais de imprensa. O documento também instou Israel a permitir o acesso imediato de meios de comunicação estrangeiros independentes a Gaza, reforçando a necessidade de proteção para todos aqueles que trabalham na Faixa de Gaza. O fotojornalista Amer Sultan, residente em Gaza, colaborou com a apuração desta reportagem.
Com informações de BBC News Brasil
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