Lula na ONU: Brasil e EUA em Crise Diplomática Sem Precedentes

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O presidente Luiz Inácio Lula na Assembleia Geral da ONU, líder da República Federativa do Brasil, está prestes a discursar pela décima vez na abertura do evento da Organização das Nações Unidas (ONU). Essa tradição diplomática brasileira, que remonta aos anos 1950, ganha um cenário particular em 2024. O chefe de Estado brasileiro sobe ao pódio na próxima terça-feira, 23 de agosto, em um contexto diplomático complexo, especialmente devido à pior crise nas relações bilaterais com os Estados Unidos em 201 anos, conforme análises de especialistas.

A tensão se intensificou após o anúncio do presidente norte-americano, Donald Trump, de tarifas de 50% sobre produtos brasileiros, além da imposição de sanções a figuras importantes do governo e do Supremo Tribunal Federal (STF), como o ministro Alexandre de Moraes. As medidas foram explicitamente vinculadas ao julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) pela Suprema Corte, criando um impasse que Lula publicamente rechaçou. Em julho deste ano, Lula, em pronunciamento em rádio e TV, classificou a situação como “chantagem inaceitável”, mencionando ameaças às instituições brasileiras e a disseminação de informações falsas sobre o comércio bilateral.

Lula na ONU: Brasil e EUA em Crise Diplomática Sem Precedentes

O impacto dessas tarifas marcava o ápice de um período de elevada tensão entre as duas maiores democracias do continente americano, evidenciando uma flagrante ausência de diálogo entre os respectivos presidentes. Em entrevista recente à BBC News Brasil, Lula reconheceu a inexistência de qualquer tipo de relacionamento com Trump, afirmando categoricamente: “Eu não tenho nenhuma relação com o Trump”. Este cenário adverso amplia a complexidade da participação do Brasil no principal palco diplomático global.

Adicionalmente, o secretário de Estado dos EUA, Marco Rubio, indicou que Washington estudava novas sanções ao Brasil, após a condenação de Bolsonaro a 27 anos de prisão pelo STF por delitos como golpe de Estado e tentativa de abolição violenta do Estado democrático de direito. Em um desdobramento recente das tensões com Trump, o secretário-geral da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), Mark Rutte, manifestou há pouco mais de um mês que o Brasil poderia sofrer sanções adicionais devido à compra de combustíveis da Rússia. O argumento apresentado é que essa aquisição beneficiaria o governo de Vladimir Putin em meio à invasão da Ucrânia. Outro ponto de crítica de analistas internacionais é o aparente fortalecimento das relações brasileiras com países considerados não-democráticos, como a China e o Irã.

Diante desse panorama, surge a questão central: a participação de Lula na Assembleia Geral da ONU é marcada pelo isolamento, dado o distanciamento com a administração Trump, ou por um fortalecimento, impulsionado pela resistência à pressão norte-americana e pela ampliação de suas alianças? Especialistas consultados por diversos veículos de imprensa apontam que o atual estágio das relações Brasil-Estados Unidos gera preocupação e pode, de fato, criar a percepção de um certo isolamento. Contudo, eles também ressaltam que, embora Lula talvez não recupere o mesmo protagonismo internacional de seus primeiros dois mandatos, sua chegada à Assembleia Geral da ONU deste ano revela um espectro de alianças e parcerias diversificado. O Brasil tem cultivado relações tanto com potências ocidentais, como a França, quanto com países como a China, demonstrando uma estratégia de diversificação diplomática.

Mudança de Cenário: O Fator Trump

Nos últimos doze meses, o contexto diplomático global e, consequentemente, o papel do Brasil sofreram uma transformação radical. Em setembro de 2023, durante a Assembleia Geral da ONU, o cenário era distinto. Naquela ocasião, o presidente dos Estados Unidos era o democrata Joe Biden, com quem o Brasil mantinha relações cordiais. A corrida eleitoral americana estava em plena efervescência, e Lula, aproveitando sua proximidade com os democratas, expressou apoio à então vice-presidente Kamala Harris, que concorria contra Donald Trump.

A vitória de Trump, no entanto, alterou o panorama. Apesar de Lula ter sido um dos primeiros chefes de Estado a congratular o republicano, o gesto não pareceu ser suficiente para estabelecer uma boa relação. Até o momento, os dois líderes nunca se encontraram pessoalmente nem tiveram contato telefônico direto. Em novembro de 2023, já com a confirmação da vitória de Trump, o Rio de Janeiro sediou a cúpula do G20, reunindo as 20 maiores economias do mundo. Este evento representava, até então, o maior investimento internacional do terceiro mandato de Lula. Biden, em seus últimos dias de presidência, participou e se encontrou com Lula, encerrando, por enquanto, um período de relações amigáveis entre as nações.

Às margens do G20, fontes reservadas próximas ao presidente brasileiro já manifestavam preocupação de que a eleição do republicano pudesse gerar desafios diplomáticos, dada a postura e as políticas de Trump, resumidas em seu slogan “Fazer a América Grande de Novo” (Make America Great Again). A diretriz então adotada pela equipe de Lula era clara: diversificar parcerias globais para reduzir a dependência em relação aos Estados Unidos. Seguindo essa estratégia, Lula intensificou sua agenda internacional. Em maio deste ano, participou da comemoração do 80º aniversário da vitória soviética na Segunda Guerra Mundial, em Moscou, ao lado de Vladimir Putin, evento que gerou críticas de países como os Estados Unidos e a União Europeia, especialmente em meio ao conflito na Ucrânia.

Ainda em maio, o presidente brasileiro viajou à China, o principal parceiro comercial do Brasil, para sua segunda visita oficial no atual mandato. Pouco tempo depois, em junho, Lula realizou uma visita oficial à França, liderada pelo presidente Emmanuel Macron, um movimento interpretado como um claro sinal de aproximação com o Ocidente. Em outra demonstração de alinhamento com nações ocidentais, Lula participou como convidado da cúpula de líderes do G7, que inclui EUA, Canadá, Reino Unido, Itália, França, Alemanha e Japão. Havia a expectativa de um possível encontro com Trump, mas o então presidente norte-americano deixou o evento no Canadá de forma antecipada.

No início de julho, Lula recebeu os líderes dos Brics, bloco composto por Brasil, China, Índia, Rússia e novos membros como Irã e Arábia Saudita. Este agrupamento tem sido visto por Washington como um desafio à liderança global americana. No último dia da cúpula, Trump disparou ameaças, declarando em suas redes sociais: “Qualquer país que se aliar às políticas antiamericanas do Brics será cobrado com uma tarifa adicional de 10%. Não haverá exceções a essa política.”

Crise Diplômática se Agrava

O ponto máximo de escalada nas tensões bilaterais ocorreu no final de julho, com o anúncio do “tarifaço” por parte dos EUA. Nas semanas seguintes, Lula manteve uma intensa agenda de conversas telefônicas com líderes mundiais, incluindo o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, o presidente da Rússia, Vladimir Putin, e o chanceler alemão, Friedrich Merz. O governo brasileiro classificou as tarifas de até 50% impostas pelos Estados Unidos como “chantagem e interferência na soberania nacional”. Em resposta, Lula afirmou que, caso as tarifas fossem efetivadas, o Brasil acionaria a recém-aprovada Lei da Reciprocidade Comercial e apresentaria uma queixa formal à Organização Mundial do Comércio (OMC).

O efeito imediato das sanções americanas foi uma queda nas exportações de setores-chave da economia brasileira, como carne, café e suco de laranja. Em Brasília, as possíveis retaliações passaram a considerar a restrição de investimentos norte-americanos no país e a revisão de acordos de propriedade intelectual. As tensões, que inicialmente se manifestavam na área comercial, rapidamente se expandiram para a diplomacia. Vistos de familiares de autoridades brasileiras começaram a ser revogados, inclusive o da filha do ministro da Saúde, Alexandre Padilha, que cancelou sua ida à Assembleia Geral da ONU. A crise se aprofundou com a aplicação da Lei Magnitsky contra o ministro Alexandre de Moraes e, mais recentemente, em 22 de setembro, contra sua esposa, Viviane Barci de Moraes. Esta lei é uma das ferramentas mais severas da política externa dos EUA, permitindo o congelamento de bens, o bloqueio de transações financeiras e a restrição de entrada em território americano de estrangeiros acusados de corrupção ou violação de direitos humanos.

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Imagem: bbc.com

Brasil em Posição Confortável na ONU?

Para Carolina Pedroso, professora de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), a influência do fator Trump é inegável na percepção externa da posição de Lula. “Essa imagem de isolamento se deve à ausência de uma relação mais fluida com os Estados Unidos”, ponderou, destacando que a situação atual das relações está intrinsecamente ligada às personalidades de ambos os líderes. Contudo, ela ressalva que Lula não chega à Assembleia Geral da ONU em uma posição de isolamento, uma vez que o Brasil mantém uma política externa ativa, reforçada por alianças estratégicas nos Brics e o fortalecimento de laços com nações como a França.

Concordando com essa visão, Paulo Velasco, professor de política internacional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), observa que o Brasil continua a ser visto como um ator relevante e participativo em fóruns multilaterais. “Pelo contrário, o Brasil é tradicionalmente reconhecido como um ator confortável e ativo nesses fóruns. Tirando o curto período do governo Bolsonaro, em que houve críticas ao multilateralismo, o país sempre demonstrou apreço e convergência em relação a esse tema”, afirmou Velasco. Para ele, a principal fonte de constrangimento no momento reside na conturbada relação com o país anfitrião do encontro, os Estados Unidos. Mesmo assim, os analistas preveem que a hostilidade bilateral não apagará o ambiente de acolhimento que o Brasil costuma encontrar no âmbito da ONU.

“É um ambiente que não nos é hostil. Pelo contrário, um ambiente onde o Brasil se sente confortável, fortalecido, muito familiar. O Brasil tem, de fato, alguns discursos históricos de abertura na Assembleia Geral”, reforça Paulo Velasco. Ele projeta que, dentro do espaço da ONU, o Brasil não enfrentará isolamento. Fontes do governo, em caráter reservado, indicam haver pelo menos 30 pedidos de reuniões bilaterais com Lula durante sua permanência em Nova York. O presidente retorna ao Brasil na quarta-feira, 24 de agosto. Embora a lista oficial não tenha sido divulgada, entre os pedidos estaria um do presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, buscando o segundo encontro bilateral com Lula desde o início do atual mandato do brasileiro. A primeira conversa ocorreu em setembro de 2023, também durante a Assembleia da ONU. Reuniões posteriores não se concretizaram por desencontros e agendas incompatíveis, gerando farpas mútuas sobre a posição brasileira na guerra na Ucrânia.

Interlocutores da delegação brasileira sinalizam interesse na realização da reunião com Zelensky, dada a relevância do tema e o desejo de mitigar o desgaste de desencontros anteriores. Até o momento, as únicas reuniões bilaterais confirmadas com líderes internacionais são com o secretário-geral da ONU, António Guterres, e com o Rei Carl XVI Gustaf e a Rainha Silvia do Reino da Suécia, agendadas para 22 de agosto. Lula também teve um encontro neste mesmo dia com o diretor-Executivo do TikTok, Shou Zi Chew. Você pode acompanhar as discussões e resoluções da Assembleia Geral diretamente no site oficial da ONU: Assembleia Geral da ONU.

Expectativas e Diálogo

Velasco sublinha a atuação dinâmica do Brasil no cenário global, mantendo um diálogo ativo com importantes atores europeus. Ele nutre expectativas de avanços concretos nesta semana, citando a provável aprovação do acordo União Europeia-Mercosul e a recente assinatura do acordo entre Mercosul e EFTA (Associação Europeia de Comércio Livre), composta por Noruega, Suíça, Liechtenstein e Islândia. Embora a Assembleia Geral da ONU não seja tradicionalmente o fórum para formalização de acordos, o professor avalia que as conversas e reuniões bilaterais paralelas podem oferecer um impulso político decisivo.

O especialista antevê que “certamente veremos ali um papo do Lula com as lideranças europeias, com a própria Ursula von der Leyen, e isso pode ajudar”. Ele também lembrou o recente telefonema entre Lula e o chanceler alemão, Olaf Scholz, onde ambos expressaram otimismo pela aprovação final do acordo com a UE até o fim do ano. Velasco enfatiza que a Assembleia Geral favorece esses encontros bilaterais, mesmo que momentos informais – como um rápido encontro em um corredor – possam ter um peso significativo no andamento das negociações. Ele destaca a ativa participação do Brasil no Sul Global, seja na liderança do Brics ou do G20.

“Eu não vejo o Brasil numa postura de isolamento. Pelo contrário, eu acho que o Brasil chega numa postura de visibilidade internacional, pela COP30, pela presidência do G20 no ano passado, pela presidência do Brics este ano. O Brasil consegue dialogar bem, não só com o Sul Global, mas também com atores do Norte Global”, observa Velasco. Para ele, o único “ponto de constrangimento é esse momento muito ruim, muito ruim mesmo na relação com os Estados Unidos”, que considera o pior período nas relações bilaterais dos últimos 60 anos, desde o golpe militar. Apesar desse contexto, o professor conclui que “quando você pensa na ONU, na Assembleia Geral em si, acho que o Brasil vai conseguir transitar com muita familiaridade e de forma confortável.”

Um gesto diplomático recente, contudo, reforça o distanciamento com Washington. Diferentemente do ano anterior, quando Brasil e Espanha organizaram, à margem da Assembleia, uma reunião sobre democracia que incluiu os Estados Unidos, nesta edição os norte-americanos não foram convidados. O encontro, que será liderado por Lula e pelo primeiro-ministro espanhol Pedro Sánchez na próxima quarta-feira, 24 de agosto, em Nova York, contará com o apoio do Chile, Colômbia e Uruguai. Todos os países convidados em 2023, à exceção dos EUA, receberam novamente convites para esta iniciativa.

Em suma, a participação de Lula na Assembleia Geral da ONU em 2024 revela um Brasil que, embora enfrente uma inédita crise diplomática com os Estados Unidos, se movimenta em um complexo tabuleiro internacional buscando diversificar alianças e reforçar seu papel em espaços multilaterais. Para aprofundar a compreensão sobre os bastidores da política e suas implicações, convidamos você a explorar outras análises e notícias em nossa editoria de Política.

Crédito: Stephani Spindel/EPA-EFE/REX/Shutterstock


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