Manual de Sabotagem dos EUA Ensinava Ineficiência na Guerra

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Um enigmático manual de sabotagem dos EUA, divulgado em janeiro de 1944 pelo serviço de inteligência do governo americano, revelou táticas que, embora elaboradas para a Segunda Guerra Mundial, ironicamente ecoam condutas ineficientes vistas até hoje. O documento, de autoria do Escritório de Serviços Estratégicos dos Estados Unidos (OSS), precursor da atual Agência Central de Inteligência (CIA), ensinava sabotagem “simples” focada na diminuição da moral e da produção em países inimigos ou ocupados.

As diretrizes contidas no “Simple Sabotage Field Manual” (Manual de Sabotagem Simples de Campo, em tradução livre) instruíam infiltrados a realizar atos como: “ser simpático com trabalhadores ineficientes, dar-lhes promoções imerecidas; discriminar os eficientes e queixar-se injustamente do trabalho deles”, e “multiplicar a papelada de forma plausível”. Essas recomendações visavam criar disfunções sistêmicas e impactar os esforços do Eixo durante o conflito global.

Manual de Sabotagem dos EUA Ensinava Ineficiência na Guerra

O Manual, composto por 32 páginas, foi distribuído sigilosamente a agentes e simpatizantes dos Aliados em nações ocupadas pelos nazistas na Europa. A estratégia era formar “cidadãos-sabotadores” capazes de, a partir de suas funções cotidianas, atuarem de maneira contraproducente. O objetivo primordial era empacar as iniciativas nazifascistas sem a necessidade de ações militares diretas. A introdução do material foi assinada por William Donovan (1883-1959), então chefe do departamento de inteligência dos Estados Unidos, uma figura central nas operações do OSS.

Contexto e a Origem da Guerra Híbrida

Especialistas modernos contextualizam esse documento dentro do que hoje é denominado “guerra híbrida”, um conceito que combina métodos militares e não militares. Leonardo Bandarra, cientista político e pesquisador na Universidade de Duisburg-Essen, na Alemanha, explica que este tipo de guerra engloba informações, atividades psicológicas e táticas que desvanecem a linha entre a guerra e a paz. Ele ressalta que “misturar métodos militares e não militares” e “manter a ambiguidade” são características intrínsecas dessa abordagem, que existe desde a antiguidade.

O historiador Victor Missiato, do Instituto Mackenzie, aponta que a escala mundial da Segunda Guerra exigiu o aprimoramento da espionagem, sabotagem e serviços secretos. Para Hugo Tisaka, fundador da empresa NSA Global, a estratégia norte-americana configurava uma “ação de guerra psicológica”, instrumento recorrentemente empregado em teatros de conflito para enfraquecer o oponente. Tisaka e Bandarra traçam paralelos entre o Manual de Sabotagem dos EUA e o “Manual do Guerrilheiro Urbano” (1969) de Carlos Marighella, notando semelhanças nas táticas propostas.

As Táticas Antiadministrativas para Sabotagem

Paulo Niccoli Ramirez, professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (Fespsp), classifica as instruções do manual como “estratégias antiadministrativas”. O documento incentivava os sabotadores infiltrados a praticarem um “excesso de zelo”, demonstrando uma hiper-responsabilidade fictícia sobre os processos. Isso gerava interrupções na produtividade e emperrava o avanço das instituições, uma “contradição” deliberada que utilizava a minúcia em nome de um suposto aperfeiçoamento para prejudicar o avanço dos adversários.

O guia americano era estruturado em cinco seções: Introdução; Possíveis Efeitos; Motivando o Sabotador; Ferramentas, Alvos e Tempo; e Sugestões Específicas para Sabotagem Simples. As instruções se assemelhavam a táticas de guerrilha, focando nos “inúmeros atos simples que o cidadão-sabotador comum pode praticar”. Especialistas observam que práticas similares também eram empregadas pelas forças nazifascistas, sugerindo que os Aliados corriam para alcançar táticas de destruição já utilizadas pelo outro lado. Interessados podem acessar o documento na íntegra no Arquivo Nacional dos EUA.

O Papel do Cidadão-Sabotador e suas Ferramentas

O manual detalhava que as “armas” do cidadão-sabotador seriam objetos cotidianos, como sal, pregos, velas ou pedrinhas, encontrados “na prateleira da cozinha, na pilha de lixo e em seu kit habitual de ferramentas”. Os alvos seriam geralmente acessíveis no dia a dia. Uma forma indireta de sabotagem sugerida não envolvia ferramentas destrutivas, mas sim “oportunidades universais para tomar decisões erradas, adotar uma atitude não cooperativa e induzir outros a seguirem o exemplo”. Isso incluía desde colocar ferramentas no lugar errado até criar atrito entre colegas, incitando discussões ou exibindo mau-humor.

Para motivar os sabotadores, o documento sugeria convencê-los de que agiam em “legítima defesa contra o inimigo” ou em retaliação. Era crucial demonstrar que, mesmo que seus esforços parecessem pequenos, eles faziam parte de um “projeto maior e abrangente”, operando em um grupo “invisível” de sabotadores. O manual recomendava ainda a não ter medo de atos de sabotagem com responsabilidade direta, “desde que o faça raramente e tenha uma desculpa”. De modo geral, a sabotagem simples deveria sempre consistir em “atos cujos resultados serão prejudiciais aos materiais e à mão de obra do inimigo”.

Manual de Sabotagem dos EUA Ensinava Ineficiência na Guerra - Imagem do artigo original

Imagem: bbc.com

Táticas no Ambiente de Trabalho e Sabotagem Física

A parte final do guia, “Sugestões Específicas para Sabotagem Simples”, é particularmente ilustrativa. Entre as recomendações para o ambiente de trabalho, estavam: “levante questões irrelevantes com frequência”, “quando possível, redirecione os assuntos a comitês para ‘maior estudo e consideração'”, “faça discursos”, “fale com frequência e por longos períodos” e “volte a decisões já tomadas na reunião anterior e tente reabrir a discussão”.

Outras táticas incluíam exigir ordens por escrito, “entender mal” as instruções propositalmente, fazer perguntas intermináveis, atribuir tarefas menos importantes primeiro e fornecer instruções incompletas ou enganosas a novos funcionários. Além disso, o manual trazia instruções para sabotagens físicas, como incendiar armazéns ou escritórios após a saída do sabotador, acumular materiais oleosos para facilitar incêndios e, em caso de ser um zelador noturno, ser o primeiro a relatar o fogo, mas “não muito cedo”, construindo um álibi.

A limpeza excessiva era desaconselhada, pois uma “fábrica suja” seria mais suscetível a incêndios. Havia dicas para entupir vasos sanitários com objetos diversos ou uma esponja desidratada que se expandiria, bloquear fechaduras com pequenos detritos e cegar ferramentas de corte para tornar o trabalho ineficiente. O guia ensinava também a danificar máquinas adulterando o óleo de lubrificação com cabelo humano, pedaços de barbante, insetos mortos ou outros objetos que obstruiriam filtros e linhas de alimentação. Estratégias para inutilizar motores elétricos, diluir gasolina com água (inclusive água salgada para danos permanentes), danificar pneus de veículos e desviar chamadas telefônicas para ramais errados também constavam no material, demonstrando a amplitude da intervenção no cotidiano.

A Ineficiência Como Arma e a Análise Moderna

Victor Missiato destaca que “essas instruções mostram como as estratégias de guerra podiam adentrar no cotidiano da vida das pessoas, em um tempo em que a guerra ainda era muito restrita ao palco das batalhas”, transformando o social em um campo de batalha. O objetivo primário, como ressalta o cientista político Leonardo Bandarra, era “criar um tempo”, “diminuir o passo das coisas que poderiam ser rápidas” através de “disfuncionalidade burocrática intencional”.

O manual encorajava: “Trabalhe lentamente”, “pense em maneiras de aumentar o número de movimentos necessários”, “use um martelo leve em vez de um pesado”, “crie o máximo possível de interrupções”. Mais ainda, orientava a passar mais tempo que o necessário no banheiro, esquecer ferramentas para ter de voltar, fingir dificuldades em entender instruções ou simular ansiedade, importunando o encarregado com perguntas desnecessárias. Agir “de forma estúpida” e ser “irritável e briguento”, oferecendo “explicações longas e incompreensíveis”, completavam o leque de táticas.

Rafael Catolé, autor de “O Poder da Gestão”, compara as orientações do manual à “antítese” de práticas empresariais atuais, que buscam agilizar decisões, focar no que é importante e democratizar o acesso. Ironicamente, Catolé e Ramirez reconhecem que muitas empresas, por “burocratização”, “falácia das reuniões” ou “excesso de intervenção administrativa”, acabam praticando ineficiências que lembram as táticas de sabotagem. Essas atitudes podem emperrar a criatividade, espontaneidade e liberdade produtiva, efetivamente, auto-sabotando suas próprias operações, mesmo que involuntariamente.

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O Manual de Sabotagem dos EUA revela não apenas táticas de inteligência da Segunda Guerra Mundial, mas também reflexões duradouras sobre a produtividade e a gestão. Suas recomendações, embora obscuras e historicamente situadas, oferecem um contraste intrigante com a eficiência buscada no mundo contemporâneo. Para mais análises sobre estratégias de guerra e política, continue acompanhando a editoria de Política em Hora de Começar.

Crédito: Domínio Público, National Archives e US Army


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