O Tico-Tico: pioneira da leitura infantil no Brasil

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A revista O Tico-Tico, lançada há 120 anos em 11 de outubro de 1905, no Rio de Janeiro, representou um marco transformador na leitura para o público infantil brasileiro. Considerada a primeira revista de histórias em quadrinhos do país, a publicação, com seu formato ilustrado e divertido, rapidamente conquistou as bancas e os corações dos pequenos leitores, oferecendo uma abordagem inovadora para estimular o hábito de leitura entre as crianças.

Naquela época, a chegada da publicação nas bancas do Rio de Janeiro se destacou significativamente em meio a outros periódicos que circulavam no país. O Tico-Tico não apenas entretinha, mas também estimulava uma prática de leitura acessível e prazerosa para as crianças, um conceito bastante moderno para o início do século XX, como destaca o cartunista e jornalista José Alberto Lovetro, conhecido como JAL, presidente da Associação dos Cartunistas do Brasil. Sua metodologia e sucesso pavimentaram o caminho para grandes nomes das histórias em quadrinhos nacionais.

O Tico-Tico: A revista que “reinventou” a leitura para os pequenos no Brasil

De acordo com JAL, a publicação foi uma das pioneiras no cenário global das revistas de quadrinhos voltadas para o público infantil. Sua capacidade de ser introduzida em escolas e o estímulo eficaz à leitura fomentaram uma forte tradição de histórias em quadrinhos no Brasil. Este legado foi fundamental para o surgimento e sucesso de renomados desenhistas, como Mauricio de Sousa e Ziraldo, que continuaram a cativar as novas gerações de leitores.

A concepção visual da revista contava com o talento do já consagrado desenhista e ilustrador ítalo-brasileiro Angelo Agostini (1843-1910), responsável pelo logotipo da publicação. O Tico-Tico rapidamente ganhou destaque, seduzindo o público infantil com suas narrativas cativantes, personagens memoráveis e seções de passatempo. Além disso, ela foi crucial para abrir espaço ao gênero dos quadrinhos no Brasil, consolidando a ideia de um mercado literário direcionado especificamente para a infância.

Sonia Bibe Luyten, jornalista reconhecida como criadora da primeira gibiteca do país e autora do livro “O Que É História em Quadrinhos”, analisa que o logotipo de Agostini transmitia uma sensação de pureza e inocência, com as crianças representadas como querubins brincando entre as letras do título, reforçando a essência da publicação.

Em seu lançamento, a revista, que se autodenominava “o jornal das crianças”, anunciava, conforme a pedagoga Cíntia Borges de Almeida, professora da Universidade Estadual de Santa Cruz (Uesc), a missão de “divertir, estimular e ser útil às petizadas do Brasil”. O editorial inaugural explicitava que a publicação veio para preencher uma lacuna no mercado editorial, por ser um jornal “exclusivamente ao uso, à leitura, ao prazer, à distração das crianças”, rejeitando a atenção dos adultos em prol do público infantil, em uma clara demonstração de seu propósito inovador.

A pedagoga Cíntia Borges de Almeida contextualiza que O Tico-Tico não se limitou a ser um veículo de entretenimento. Ela representou um instrumento importante na expansão da imprensa e na modernização dos meios de comunicação no país. A revista também serviu como um símbolo para analisar as estratégias editoriais da época, visando a divulgação de ideias, pensamentos e projetos de sociedade. Em um período de elevados índices de analfabetismo, publicações como O Tico-Tico desempenharam, de forma informal, um papel alfabetizador, complementando o trabalho da escola e democratizando o acesso à leitura através de narrativas mais sintéticas e plurais.

O jornalista Roberto Elísio dos Santos, coautor do livro “O Tico-Tico – 100 Anos” (2006) e vice-coordenador do Observatório de Histórias em Quadrinhos da Universidade de São Paulo (USP), reitera que a revista “abriu o mercado para outras publicações do gênero” no Brasil. Voltada inicialmente para crianças de classe alta que frequentavam escolas e estavam em fase de alfabetização, O Tico-Tico se tornou crucial para a formação de novos leitores. A publicação era inovadora, por exemplo, ao lançar, ao fim de cada ano, almanaques de capa dura e maior número de páginas, que se tornavam um cobiçado presente de Natal para as crianças.

A inspiração para a criação de O Tico-Tico veio de publicações infantis semelhantes que circulavam na França, ideia do jornalista Luís Bartolomeu de Souza e Silva (1864-1932). Segundo Maria Cristina Merlo, mestre em história em quadrinhos pela USP, as revistas europeias do início do século eram coloridas e moralistas, características que O Tico-Tico absorveu para promover a educação e a construção de sólidos valores morais. Merlo enfatiza que, apesar de incluir muitos quadrinhos, O Tico-Tico era mais amplamente uma revista infantil, onde os quadrinhos gradualmente se tornaram o principal atrativo para gerações de crianças brasileiras.

A revista se beneficiou da robusta estrutura da editora que já publicava O Malho, uma influente revista ilustrada focada em sátira política e humor, surgida em 1902, também sob a direção de Silva. Richardson Santos de Freitas, cartunista e biblioteconomista que estudou histórias em quadrinhos na UFMG, pontua que essa infraestrutura de profissionais, maquinário e distribuição foi crucial. Essa sinergia permitiu que a primeira edição, com 10 mil exemplares, esgotasse rapidamente, levando à necessidade de uma segunda tiragem. A publicação alcançou um sucesso estrondoso, sem grandes concorrentes por muito tempo, chegando a atingir tiragens semanais de 100 mil exemplares.

Personagens Nacionais e Adaptações de O Tico-Tico

O elenco de personagens de O Tico-Tico era diverso, incluindo criações genuinamente nacionais, republicações autorizadas de quadrinhos estrangeiros populares e, em alguns casos, cópias não autorizadas. Um exemplo notório é Chiquinho, que por muitos anos foi o personagem mais famoso da revista. Nos anos 1950, descobriu-se que se tratava de um plágio de Buster Brown, do autor norte-americano Richard Felton Outcault (1863-1928).

O Tico-Tico: pioneira da leitura infantil no Brasil - Imagem do artigo original

Imagem: bbc.com

No entanto, o personagem Chiquinho ganhou nuances e características genuinamente brasileiras ao longo do tempo. Como comenta Merlo, ele foi adaptado à realidade cultural do país e se consolidou como o personagem-símbolo de O Tico-Tico. Ambientado no cotidiano de uma cidade brasileira da época, Chiquinho, um garoto de classe média, ganhou coadjuvantes notáveis: Benjamin, um menino negro, e Jagunço, seu cão fiel. O professor Waldomiro Vergueiro, coautor de “O Tico-Tico – 100 Anos”, explica que, embora Buster Brown tenha durado pouco nos Estados Unidos, Chiquinho fez grande sucesso no Brasil, e editores brasileiros encarregaram autores nacionais de dar continuidade às suas histórias. Foi assim que foram criados Benjamin e Jagunço, personagens que, apesar de refletirem padrões sociais da época com conotações racistas vistas hoje, foram integrados à cultura brasileira, chegando a ser mencionados na canção “Lampião de Gás”, imortalizada na voz de Inezita Barroso.

O Tico-Tico também se destacou pela aquisição autorizada de tiras através dos *syndicates* americanos, que eram agências distribuidoras de conteúdos famosos. Foi por meio dessa parceria que o icônico Mickey Mouse estreou no Brasil nos anos 1930. Inicialmente batizado como Ratinho Curioso, mais tarde evoluiu para Camondongo Mickey, o Ratinho Curioso. Richardson Santos de Freitas aponta que o ratinho da Disney apareceu na edição número 1277, em 26 de março de 1930, apenas dois anos após sua criação por Walt Disney (1901-1966), em uma série intitulada “A História do Ratinho Curioso”. Anos depois, em 1934, a seção foi renomeada como “As Aventuras do Camondongo Mickey”, com a revista sempre destacando a exclusividade da publicação no Brasil.

Outros personagens internacionais de grande sucesso, como Popeye, renomeado para Brocoió, e Krazy Kat, que se tornou Gato Maluco, também fizeram suas estreias em terras brasileiras por meio das páginas de O Tico-Tico. Além das figuras estrangeiras, a revista foi palco para o brilho de talentosos quadrinistas brasileiros. Entre eles, J. Carlos (José Carlos de Brito e Cunha, 1884-1950) eternizou suas histórias de Lamparina, uma personagem confundida com um menino que aprontava diversas travessuras. J. Carlos, influenciado pelo estilo Art Déco, chegou a desenhar o Mickey em anúncios da revista e até recusou um convite de Walt Disney em 1941 para trabalhar nos Estados Unidos. O trio de amigos Reco-Reco, Bolão e Azeitona, criações do caricaturista Luiz Sá (1907-1979), também conquistaram os leitores rapidamente. Luyten, pioneira na pesquisa de quadrinhos, ressalta que o sucesso de O Tico-Tico se deve, em grande parte, ao aproveitamento do talento de gênios das artes gráficas brasileiras da época, como Angelo Agostini e J. Carlos.

Diálogo com Pais e Impacto Duradouro da Revista Infantil

Especialistas também atribuem parte do sucesso e longevidade de O Tico-Tico (mais de 50 anos de circulação constante) à sua capacidade de dialogar não apenas com as crianças, mas também com os adultos – principalmente os pais que adquiriam a publicação para seus filhos. A revista influenciou a formação educacional e cultural de múltiplas gerações no Brasil, funcionando como um incentivo crucial à leitura. Para além do entretenimento, Cíntia Borges de Almeida enfatiza que é importante analisar o conteúdo dos textos da revista. Era uma publicação colorida, com diversas páginas, imagens, ilustrações, anúncios, atividades didáticas, charges e caricaturas.

A pesquisadora argumenta que o modelo de um “jornal para crianças” comprado por adultos exigia que a publicação, embora mirando os pequenos, cativasse os pais, que, inevitavelmente, liam o conteúdo antes ou junto com os filhos. Assim, a revista se empenhou em apresentar aos adultos um conteúdo que gerasse uma “formação considerada adequada” para as crianças. Conforme JAL, “essas revistas eram a televisão da época. Era preciso alguma coisa para as crianças e a leitura é o melhor brinquedo”. Para aprofundar os estudos sobre a imprensa brasileira e sua evolução ao longo da história, consultar memória cultural brasileira é uma forma de conhecer importantes publicações.

O Tico-Tico circulou de forma constante e periódica até 1962. A partir de então, passou a ser um título de publicações eventuais, com foco em edições paradidáticas, abordando temas de geografia, história ou literatura, muitas vezes direcionadas para o uso em sala de aula, conforme Lovetro. Desde sua criação, a revista manteve uma visão educativa e formativa. Era uma ferramenta para os pais incentivarem seus filhos a ler, contendo contos, fábulas, conselhos e histórias moralizantes. Embora as crianças fossem atraídas por figuras, jogos e quadrinhos, o conteúdo educativo era igualmente robusto. As páginas de O Tico-Tico, claro, também eram palco para anúncios variados, desde marmelada a, surpreendentemente para os padrões atuais, cigarros e remédios, como ressalta Richardson Santos.

Roberto Elísio dos Santos observa que O Tico-Tico soube inovar constantemente, introduzindo “novidades e personagens interessantes”. Isso lhe permitiu permanecer nas bancas por décadas, encantando gerações. Contudo, seu formato diversificado foi se tornando datado, e a revista perdeu espaço para outras publicações e mídias ao longo do tempo. A última edição de O Tico-Tico, de número 2097, foi publicada em 1977, encerrando um ciclo de grande impacto na cultura e na leitura infantojuvenil brasileira.

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A trajetória de O Tico-Tico exemplifica como uma publicação pode se tornar um agente transformador da cultura e da educação de um país. Ao longo de sete décadas, ela moldou hábitos de leitura e inspirou gerações de artistas e leitores, consolidando um legado incontestável para as produções culturais infantis. Para mais análises sobre eventos e marcos culturais no Brasil, explore outros artigos em nossa editoria de análises.

Crédito das Imagens: Reprodução/ Acervo Pessoal de Richardson Santos de Freitas e Acervo da Biblioteca Nacional.


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