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Em maio de 1972, o Museu de Arte de Worcester, em Massachusetts, Estados Unidos, foi palco de um audacioso assalto a mão armada que marcou o início de uma nova era nos **crimes de arte**. Dois criminosos invadiram o local, mantiveram um grupo de estudantes sob a mira de armas e atiraram em um segurança. Eles fugiram com quatro valiosas telas, incluindo obras de Paul Gauguin (1848-1903) e Pablo Picasso (1881-1973), além de um suposto Rembrandt (1606-1669), posteriormente atribuído a um de seus alunos. O montante das obras subtraídas, avaliado em US$ 2 milhões na época (cerca de R$ 10,8 milhões em valores atuais), levou o jornal The New York Times a classificar o evento como um dos “maiores roubos de arte dos tempos modernos”.
A ousadia do ocorrido em Worcester, orquestrado pelo criminoso profissional Florian “Al” Monday, teve um desenrolar peculiar. O esquema veio à tona quando os assaltantes, contratados por Monday, não resistiram a contar suas façanhas em um bar da vizinhança. Felizmente, menos de um mês após o delito, os quadros foram recuperados intactos em uma fazenda de criação de porcos em Rhode Island, e prontamente restituídos à galeria. O incidente não apenas gerou atenção midiática como também, especula-se, influenciou o planejamento de outros atos criminosos. Segundo relatos, esse episódio teria sido um catalisador para um furto ainda mais célebre e vultoso que viria a acontecer anos depois no mesmo Estado.
Roubo de Obras de Arte: Ascensão dos Crimes no Século 20
De fato, alguns sugerem que o assalto ao Museu de Worcester teria inspirado o subsequente e muito mais conhecido roubo de arte no Museu Isabella Stewart Gardner, em Boston, também nos EUA, em 1990. Nesse evento de Boston, peças de arte estimadas em surpreendentes US$ 500 milhões (equivalente a aproximadamente R$ 2,7 bilhões hoje) foram levadas, tornando-o o assalto de maior valor na história norte-americana, e que permanece sem solução até hoje. A série de roubos notórios não apenas destacou a vulnerabilidade de importantes instituições culturais, mas também revelou um padrão alarmante de traficantes e organizações ilegais interessadas na comercialização e roubo de propriedades culturais.
O Fenômeno da Valorização e do Aumento de Delitos Artísticos
O impacto desses incidentes reverberou até o cinema, inspirando a roteirista e diretora Kelly Reichardt em seu novo filme, The Mastermind. Lançado em outubro, a obra cinematográfica é uma recriação ficcional dos acontecimentos pós-assalto de Worcester e da explosão de roubos de arte que caracterizou a década de 1970. Reichardt revelou que a “ironia” de Monday, o mentor do roubo, antes ser músico com uma banda e ter um disco gravado em 45 rpm, adicionou uma camada singular à sua pesquisa para o projeto. O filme busca desglamourizar a percepção pública dos crimes de arte, adotando um ritmo mais contido e um foco mais crítico na natureza desastrosa do delito, diferentemente da maioria das produções de Hollywood que costumam romantizar assaltos.
Revisitando o Estilo dos Filmes de Assalto: De “Thomas Crown” a “The Mastermind”
Filmes de sucesso tradicionalmente celebram uma estética refinada e sofisticada nos crimes envolvendo obras de arte, a exemplo de “Thomas Crown: A Arte do Crime” (1999). Nesta produção, Pierce Brosnan interpreta um bilionário benevolente que engendra um roubo no Museu Metropolitano de Arte de Nova York. Contudo, “The Mastermind” se desvia dessa narrativa usual, aprofundando-se nos dilemas de JB Mooney (interpretado por Josh O’Connor), um jovem educado de classe média, ex-aluno de arte, que se vê em apuros financeiros como carpinteiro desempregado em Massachusetts. Pressionado por seus pais abastados a saldar dívidas, JB considera assaltar o fictício Museu de Arte de Framingham, mas se depara com a difícil realidade de vender obras de arte facilmente reconhecíveis no mercado clandestino.
O Contexto e as Inspirações dos Roubos na Década de 1970
A decisão de Kelly Reichardt de explorar esse tema surgiu após encontrar uma matéria sobre o 50º aniversário do roubo de Worcester enquanto trabalhava em “Esculturas da Vida” (2022). Segundo ela, a pesquisa por um personagem central como JB se tornou crucial para infundir a narrativa com o realismo necessário. Reichardt busca “abandonar” ideias genéricas para focar nos detalhes minuciosos e nas circunstâncias enfrentadas pelo personagem, o que “naturalmente retira o glamour” da situação. Sua pesquisa sobre o roubo de 1972 evocou memórias de muitos “assaltos relâmpago” que, com frequência, dominavam as manchetes dos jornais daquele período.
Alguns meses após o ocorrido em Worcester, o Canadá foi cenário do “crime da claraboia”. Três ladrões armados invadiram o Museu de Belas Artes de Montreal, levando obras, joias e objetos avaliados em US$ 2 milhões (equivalente a R$ 10,8 milhões), o que representou o maior assalto da história do país. Em 1976, no sul da França, onze dos últimos quadros de Picasso, expostos temporariamente no Palácio dos Papas em Avignon, foram subtraídos por três criminosos. Houve também o notório caso de Rose Dugdale (1941-2024), uma herdeira educada em Oxford que se uniu ao Exército Republicano Irlandês (IRA) e, em 1974, com membros da organização, roubou 19 quadros, incluindo peças de Johannes Vermeer (1632-1675) e Peter Paul Rubens (1577-1640), da Russborough House, na Irlanda, para tentar trocá-los pela libertação de colegas de prisão. Joe Lawlor, que dirigiu o filme “Baltimore” (2023) sobre a vida de Dugdale, descreveu o roubo como “incrivelmente bem organizado, mas muito mal idealizado.”
Histórico dos Crimes de Arte e as Falhas na Segurança
Muito antes da onda de crimes nos anos 1970, a história já registrava saques e roubos de obras de arte. Em 1473, piratas furtaram o tríptico “O Juízo Final” de Hans Memling (c.1435-1494) de um navio em direção a Florença, Itália. Já no século 20, o infame roubo da Mona Lisa, do Museu do Louvre, em Paris (França), em 1911, perpetrado pelo ex-funcionário Vincenzo Peruggia (1881-1925), causou alvoroço global. Embora Peruggia tenha sido capturado e sentenciado a apenas seis meses de prisão, o assalto de Massachusetts inegavelmente desencadeou uma reviravolta no cenário de roubos de obras de arte.
O historiador de arte Tom Flynn sugere que o pico dos roubos na década de 1970 coincide diretamente com um “boom no mercado de arte”. Ele aponta para a popularização de programas televisivos como “Antiques Roadshow”, da BBC (lançado em 1977), que estimulou a percepção pública das obras de arte como investimentos financeiros. Esta “mudança cultural”, segundo Flynn, alterou a maneira como as obras de arte eram vistas, tornando-as “sinônimo de dinheiro”. Ao mesmo tempo, criminosos perceberam a fragilidade da segurança dos museus. Reportagens no início da década de 1970 já denunciavam “crises” de financiamento em museus e cortes de segurança, exacerbados pela inflação. Roubos menores, como o retrato do Duque de Wellington de Francisco de Goya (1746-1828) da Galeria Nacional de Londres em 1961, e três Rembrandts da Galeria de Imagens de Dulwich, em 1966, demonstraram como era simples remover obras sem detecção.

Imagem: bbc.com
Tal como o segurança baleado em Worcester, os funcionários dos museus frequentemente careciam de armas e treinamento adequado, sendo muitas vezes “aposentados” sonolentos ou “alucinados”, nas palavras de Kelly Reichardt. As “belas entradas circulares na frente” dos museus daquela época, como Reichardt destaca, ironicamente facilitavam as fugas. Embora “The Mastermind” apresente um investigador de crimes de arte do FBI, a verdadeira Equipe de Crimes de Arte da instituição só seria formada em 2004, evidenciando uma lacuna na resposta institucional aos roubos de arte.
O Charme Ficcionado e a Brutal Realidade dos Ladrões de Arte
Flynn ressalta que, enquanto museus demoravam para reagir, os próprios ladrões de arte geralmente não demonstravam grande perspicácia. Ele define a história desses crimes como uma “história de idiotas oportunistas” que “não compreendem a própria natureza das obras de arte” ou “nem mesmo o mercado”, muitas vezes enfrentando a dificuldade de negociar objetos roubados. Contudo, nos anos 1960 e 1970, surgiu o arquétipo ficcional do ladrão de arte como um vigarista adorável, em um período de grande desilusão nos EUA, marcado pela Guerra do Vietnã e pelo governo Nixon. Filmes como “Topkapi” (1964), “Como Roubar um Milhão de Dólares” (1966), e “Como Possuir Lissu” (1966) glamourizaram esses personagens.
A escritora Susan Ronald, especialista em crimes de arte, argumenta que o fascínio por esses ladrões na cultura popular refletia a mentalidade desafiadora da época. Parte do apelo, ela explica, era “ludibriar o establishment” e o fato de que “roubos de arte não envolvem indivíduos específicos”, sendo crimes “contra uma instituição” e, portanto, percebidos como mais “arrojados”. Essa glorificação contribuiu para a concepção equivocada de que são “crimes sem vítimas”, o que levava a sentenças “ridículas” (curtas) para os criminosos, apesar da seriedade cultural do delito.
Desmistificando o Personagem: De Glamour a Brutalidade em “The Mastermind”
“The Mastermind” busca de várias maneiras reverter essas ideias. Ao invés do galã tradicionalmente visto no cinema (como Michael Caine ou Alain Delon), Kelly Reichardt representa JB de forma menos heroica, enfatizando que esses criminosos podem ser “muito idiotas”, “misóginos”, e que a liberdade de ser um fora-da-lei é um “privilégio” com um alto “custo”. A esposa de JB, Terri (Alana Haim), e sua colega Maude (Gaby Hoffman) fornecem uma visão mais objetiva, desafiando o comportamento dele e expondo os sacrifícios pessoais de sua liberdade irresponsável.
Atualmente, roubos em galerias e museus públicos são menos comuns, pois os criminosos, segundo Tom Flynn, passaram a “compreender que [as obras] são objetos essencialmente não comercializáveis”. No entanto, o recente assalto ao Museu do Louvre mostra que a ameaça persiste, e cortes orçamentários em instituições culturais podem comprometer a segurança futura. Para Vernon Rapley, consultor de patrimônio, as pinturas enfrentam riscos ainda maiores do que os criminosos: “Se você não investir nos seus telhados e janelas, em última análise, o tempo e as mudanças climáticas provavelmente representam maiores riscos aos objetos do que os criminosos”. “The Mastermind” está atualmente em cartaz nos cinemas brasileiros.
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A história do roubo de obras de arte revela um fascinante intercâmbio entre o valor intrínseco das peças, a fragilidade de sua proteção e a complexa imagem que a cultura popular constrói em torno de tais crimes. Para aprofundar-se em como eventos históricos impactam o nosso presente e como a cultura se reflete em análises críticas, convidamos você a explorar outras matérias na nossa editoria de Análises, onde desvendamos as nuances de temas relevantes para a sociedade.
Crédito, Mubi
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