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A história de São Cosme e Damião, celebrados por milhões, especialmente no Brasil, é um intrincado mosaico de fé, caridade e mistério. Estes dois personagens, venerados como santos católicos, integram a extensa lista de figuras cujo culto popular floresceu após seu martírio. Vivendo nos séculos iniciais do cristianismo, em uma era de intensa perseguição por parte do governo romano, a ausência de documentação histórica coeva faz com que grande parte do que se conhece sobre eles seja fundamentada na tradição.
Contudo, essa tradição, que teve suas raízes no coração de Roma, possui um registro robusto, ainda que tardio. A única evidência historicamente verificável acerca dos irmãos aponta que a veneração a eles, como mártires e santos, se estabeleceu entre o século IV e o V. Segundo Filipe Domingues, vaticanista, vice-diretor do Lay Centre e professor da Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma, a existência de vastas evidências do culto em si é incontestável.
São Cosme e Damião: médicos e mártires da Igreja Primitiva
O escritor e teólogo J. Alves, autor da obra “Os Santos de Cada Dia”, posiciona São Cosme e Damião na vasta lista de mártires cristãos da Igreja primitiva, estimando que tenham vivido provavelmente entre o primeiro e o terceiro séculos da era cristã. Ele sublinha que a persistência de suas memórias até os dias atuais é reflexo de um antigo costume eclesiástico de registrar os nomes dos mártires e exaltar seus testemunhos de fé em Jesus, tanto nas celebrações litúrgicas quanto no ofício divino. Com o passar dos séculos, e de acordo com as visões predominantes em cada época, a religiosidade popular agregou à mesma narrativa uma mescla de ficção e de eventos considerados historicamente genuínos.
O Martirológio Romano, um abrangente catálogo de santos e mártires organizado pela Igreja Católica, é defendido pelo pesquisador José Luís Lira, fundador da Academia Brasileira de Hagiologia e professor da Universidade Estadual Vale do Aracaú, como a melhor prova da existência dos santos. Neste livro, eles são apresentados como mártires que, de acordo com a tradição, praticavam a medicina sem jamais solicitar qualquer remuneração, oferecendo seus cuidados gratuitamente e curando um grande número de pessoas.
Adicionalmente, Cosme e Damião figuram na “Legenda Áurea”, uma coleção de narrativas sobre a vida de santos compilada por volta de 1260 pelo arcebispo de Gênova, Jacopo de Varazze (1229-1298). Esta obra descreve Cosme como um exemplo de virtude, isento de vícios, e Damião como um indivíduo de comportamento sereno e doutrina profunda, concebido como a “mão do Senhor que cura como remédio”.
A basílica mais antiga dedicada aos santos, localizada na região do Foro Romano, remonta ao século IV, com alguns estudiosos sugerindo o início de sua construção em 309, enquanto outros a datam na primeira metade do século VI. É com base na existência e antiguidade desta basílica que é possível traçar um caminho retrospectivo para compreender a história dos irmãos, ancorada na tradição, como aponta Domingues.
A maioria das narrativas sobre eles os identifica como irmãos, frequentemente referindo-se a eles como gêmeos. Acredita-se que tenham nascido na região da atual Turquia – ou, conforme outras fontes, na Síria – e desempenhado o papel de médicos, peregrinando e tratando doentes. Uma característica distintiva e fundamental era a recusa de qualquer pagamento por seus serviços. J. Alves reitera o consenso de que Cosme e Damião eram irmãos gêmeos e praticantes da arte da cura.
Conforme Thiago Maerki, associado da Hagiography Society, nos Estados Unidos, a tradição os descreve como médicos cristãos dotados de grande habilidade em sua profissão e que não aceitavam recompensa por seu trabalho. Essa prática os integra ao grupo dos “santos anárgiros”, termo que Maerki contextualiza como “inimigo do dinheiro”. Esta tradição abrange santos que rejeitavam o dinheiro, recusavam e combatiam a riqueza.
Essa conduta, permeada pela caridade, era inseparável da evangelização. Ao proporcionar cuidados gratuitos aos necessitados, eles atuavam como difusores da fé cristã, conforme observa Domingues, o que, consequentemente, lhes conferiu notoriedade. Contudo, em tempos de perseguição, tal popularidade nem sempre era benéfica. A crescente fama de Cosme e Damião teria atraído a atenção do Imperador Diocleciano (243-311), conhecido por ser o principal promotor da mais violenta perseguição aos cristãos.
Assim, a tradição sustenta que Cosme e Damião teriam sido executados como mártires, provavelmente no ano 300. O livro “Il Santo Del Giorno”, de Mario Sgarbossa e Luigi Giovannini, situa o local de suas mortes na antiga cidade de Cirro, na Síria, hoje em ruínas. Alves explica que a ampla fama de suas curas gratuitas atraiu muitos à fé cristã, o que teria incomodado o governador local, levando à sua condenação e morte, precedida por torturas.

Imagem: bbc.com
As narrativas sobre a maneira de suas mortes divergem em detalhes, mas convergem no fato de que, após sobreviverem a uma série de tormentos, foram finalmente mortos por golpes de espada. O livro “Il Santo Del Giorno” relata que, condenados à lapidação, as pedras retornavam contra os perseguidores; colocados para serem atravessados por quatro soldados com flechas, os dardos desviavam e feriam a muitos, enquanto os santos permaneciam incólumes. A única alternativa, conforme a obra, foi recorrer à decapitação por espada, “honra reservada só aos cidadãos romanos”.
No Brasil, muitos conhecem São Cosme e Damião através do costume popular de presentear crianças com doces, especialmente na data a eles dedicada, que historicamente era 27 de setembro e, a partir de 1969, foi alterada pela Igreja Católica para 26 de setembro. Domingues destaca que este costume é tipicamente brasileiro e uma de suas explicações reside no sincretismo com religiões de matriz africana. J. Alves detalha que os antigos escravizados no Brasil, para velar suas crenças, associaram os orixás infantis, os Ibeijis – também gêmeos – aos santos católicos.
Na matriz religiosa africana, os Ibeijis são filhos de Xangô e Iansã. Eles estão vinculados não apenas à força da natureza que propicia e mantém a vida, mas também à festividade, à alegria coletiva, ao entretenimento e às brincadeiras infantis. Lira interpreta a tradição dos doces como uma espécie de ex-voto, um gesto de gratidão aos santos por um milagre concedido. No contexto das religiões afro-brasileiras, onde são também venerados, a oferta possui um sentido ritualístico. No entanto, o mais relevante é que, independente da filiação religiosa, o oferecimento de doces às crianças assegura a perpetuação da tradição.
É notável que, se no Brasil houve um sincretismo entre os santos católicos e os orixás do Candomblé, alguns estudiosos sugerem que a própria origem mítica de Cosme e Damião pode estar ligada a um sincretismo anterior: o de divindades pagãs do mundo antigo com o cristianismo em suas fases iniciais. No século VI, havia uma tendência acentuada em adaptar cultos pagãos ao cristianismo. Maerki explica que foi nesse período que ocorreu a transposição da veneração de certas figuras ligadas à medicina e à cura para os santos cristãos. A concepção de “médicos santos e mártires” poderia ser uma adaptação dessa tradição pagã de reverenciar deidades da cura.
Entre as figuras que teriam influenciado tais narrativas, destacam-se o deus helenístico-egípcio Serápis e Esculápio (ou Asclépio), o deus da medicina nas mitologias grega e romana. A prática da medicina ancestral em um tempo de conhecimentos limitados, caso os irmãos fossem de fato médicos, criava um terreno fértil para relatos milagrosos. E, ao longo dos séculos, essas narrativas se expandiram em proporção e em riqueza de detalhes. Maerki ressalta um dos milagres mais famosos: o do transplante de uma perna. Uma das versões narra que o evento teria acontecido após a morte da dupla, quando um sacristão com hanseníase teria sonhado com a cura pelos santos. Outra narrativa afirma que o milagre teria sido realizado pelos próprios Cosme e Damião em vida. O sacristão padecia de uma enfermidade grave que corroía sua perna, e os irmãos teriam amputado o membro deteriorado, substituindo-o pelo de um africano falecido recentemente.
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Crédito, Domínio Público
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