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As recentes ações conjuntas da Polícia Federal, Receita Federal e de órgãos como o Ministério Público de São Paulo (MPSP) revelaram uma rede complexa de atividades econômicas e financeiras mantidas pelo Primeiro Comando da Capital (PCC) no Brasil. A extensa operação, que deflagrou 350 mandados de busca e apreensão em oito estados brasileiros na última semana, focou na atuação do grupo criminoso no estratégico setor de combustíveis.
A investigação minuciosa trouxe à tona uma teia de negócios que abrange todas as fases da cadeia de valor, desde a importação e distribuição até o varejo e o mercado financeiro. Os métodos incluem bilhões em importações realizadas de forma ilegal, esquemas sofisticados de sonegação de impostos, a adulteração de combustíveis e a utilização estratégica de redes de postos de gasolina para operações de lavagem de dinheiro. Além disso, a apuração demonstrou o uso de fundos de investimento para a camuflagem de recursos gerados por atividades ilícitas, indicando uma profunda inserção na economia formal.
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A complexidade das engrenagens expostas pelas operações no último dia 28 de agosto não surpreende os pesquisadores da área de segurança pública e crime organizado. Para Gabriel Feltran, um renomado sociólogo que atua como diretor de pesquisa no Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS) e professor titular da Sciences Po, em Paris, esses achados reiteram uma característica já conhecida do crime organizado no século 21: a capacidade de operar simultaneamente nas esferas econômicas legais e ilegais. Feltran, autor do livro “Irmãos: Uma História do PCC” e estudioso de mercados ilegais transnacionais que se estendem pelas Américas, Europa e África, afirmou em entrevista que a presença do PCC em fundos e fintechs sediados na Faria Lima – o coração financeiro de São Paulo – não constitui uma surpresa para quem acompanha o fenômeno.
Contrariando a narrativa oficial de “infiltração” do crime organizado no sistema financeiro, argumento repetido pela subsecretária da Receita Federal, Andrea Costa Chaves, Feltran apresenta uma visão distinta. Ele questiona a quem se refere a expressão “se infiltrando”. Para o sociólogo, uma possibilidade seria que os próprios profissionais do mercado financeiro, figuras políticas e outros agentes de poder estejam, na realidade, buscando ativamente formas de se integrar às estruturas que possibilitam o acesso à economia bilionária gerada pelos mercados ilícitos. Feltran defende que há um desejo do mercado financeiro de atrair esses recursos criminosos, formulando ativamente estratégias para captá-los sem que as instituições se comprometam diretamente ou “sujem as mãos”.
O pesquisador também contesta a ideia de que a operação policial mais recente teria atingido o que popularmente se conhece como o “andar de cima” do PCC, termo empregado por figuras públicas como o ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Para Feltran, quando os operadores envolvidos nessas redes são detidos, a facção nem sempre desmorona ou é impactada de forma significativa. Ele aponta que, historicamente, a organização tem demonstrado uma capacidade notável de substituir seus operadores com grande facilidade e rapidez, equiparando esse mecanismo à forma como um aplicativo consegue repor seus entregadores ou motoristas. A questão central, segundo ele, não é apenas deter indivíduos, mas compreender a fundo a estrutura organizacional e sua resiliência.
A amplitude das operações do último dia 28/08 levantou debates sobre seu impacto real na estrutura do PCC. O sociólogo Gabriel Feltran relembrou uma operação similar da Polícia Federal em 2020, batizada de “Rei do Crime”, e destacou que, antes dela, dezenas de outras grandes investidas contra o PCC já haviam ocorrido. Apesar da validade da concepção policial – focada em investigação, análise de redes criminais e ação interinstitucional –, Feltran observa que o PCC não manifestou sinais de enfraquecimento após essas ações, ao contrário, continuou em processo de expansão. Ele enfatiza que uma operação que culmina em duzentos mandados de prisão tem um impacto limitado em uma facção que conta com dezenas de milhares de membros e milhões de operadores que executam atividades intermediárias, sugerindo que tais medidas, isoladamente, não abalam a estrutura de forma duradoura.
Os valores identificados nas operações já atingiam bilhões de reais em 2020 e, segundo Feltran, hoje são ainda maiores. A identificação de cerca de R$ 60 bilhões apenas nesta última operação é significativa, especialmente quando comparada ao faturamento de grandes corporações legais. A título de ilustração, a Petrobras, uma das maiores empresas do Brasil, obteve um lucro de R$ 36 bilhões e um faturamento de R$ 115 bilhões no ano de 2024. Esses dados servem para sustentar a argumentação do sociólogo de que, embora persista a crença de que os mercados ilegais são marginais, todas as evidências apontam que eles são uma componente absolutamente central na economia contemporânea, e esse dinheiro se integra diretamente ao Produto Interno Bruto (PIB) do país.
O especialista explica que empresários do setor legal podem, de fato, enfrentar concorrência desleal por parte dessas atividades ilícitas. No entanto, de uma perspectiva macroeconômica, a geração de valor ilegal é sistematicamente incorporada pela economia formal em diversos países, inclusive globalmente. Ele esclarece que os fundos associados às “contas do PCC” não se originam exclusivamente de atividades ilegais. As táticas de ocultação e lavagem são tão avançadas que mesclam rapidamente capital limpo e sujo. Adicionalmente, torna-se desafiador discernir o montante exato pertencente à organização propriamente dita e quanto pertence a operadores privados que integram as redes de negócio da facção. Essa complexidade reforça a dificuldade de desmantelar totalmente a estrutura financeira.
Questionado sobre a declaração da subsecretária da Receita Federal a respeito da “invasão do crime organizado na economia real e no mercado financeiro”, Feltran expressou que, após mais de duas décadas dedicadas ao estudo dessas temáticas, a concepção de “infiltração” é um tanto “engraçada”. Ele reiterou a dúvida sobre quem realmente estaria se infiltrando e propõe a possibilidade de que são as elites da Faria Lima, políticos e outros segmentos da sociedade que buscam ativamente apropriar-se da economia bilionária gerada pelos mercados ilícitos. Para ele, o volume bilionário de dinheiro produzido ilegalmente eventualmente alcança grandes fundos financeiros. Nesse contexto, são constituídas empresas de intermediação especializadas em conferir uma fachada de legalidade a esses recursos ilícitos para sua circulação no sistema financeiro. Feltran salienta que não apenas existe um movimento ativo nos mercados formais e financeiros para capturar esse valor de origem questionável, como também as elites demonstram interesse direto nessa acumulação de capital, exemplificando com o ensinamento da sociologia econômica de que “dinheiro é sujo ou limpo até determinada escala; depois, a sua qualidade é a sua quantidade”.
A presença do PCC em fundos de investimento e fintechs da Faria Lima, inclusive com a participação de “infiltrados” em vez de apenas empresas de fachada, não surpreende Gabriel Feltran. O envolvimento entre o crime e camadas mais elevadas da economia, há muito especulado em cenários como a Vieira Souto, Jardins e a própria Faria Lima, já era uma realidade para o sociólogo. A integração entre economias lícitas e ilícitas, segundo suas pesquisas, é um cenário consolidado. Ele explica que onde há uma grande concentração de dinheiro, o interesse de diversos atores se intensifica. Estudos anteriores conduzidos por seu grupo de pesquisa sobre cadeias de valor, como as de veículos e autopeças roubadas, e o tráfico de cocaína, já haviam evidenciado o interesse de elites financeiras no aproveitamento desse capital criminoso.

Imagem: bbc.com
Feltran mencionou entrevistas realizadas com operadores do mercado financeiro na Faria Lima entre 2021 e 2022. As conversas, que frequentemente começavam com afirmações sobre a dificuldade de operar dinheiro ilegal devido a “muitos controles”, tendiam a evoluir para uma constatação da realidade: “É, você sabe, tendo muito dinheiro, tudo é possível.” Esta percepção reforça a visão de Feltran de que o mercado financeiro, de fato, almeja esse dinheiro proveniente de atividades criminosas e que existem discussões ativas sobre as melhores formas de integrá-lo ao sistema sem aparente comprometimento.
Ao avaliar a complexidade do esquema desvendado, que inclui operações em combustíveis e outros setores considerados “clássicos”, Feltran enfatiza que o uso de fintechs pelo PCC não é uma mera inovação tecnológica, mas uma adaptação e evolução de práticas já conhecidas de lavagem de dinheiro. Ele reitera que o PCC representa uma inovação fundamental no universo criminal brasileiro, um fenômeno ainda não plenamente compreendido em sua totalidade. Os últimos dez anos de expansão internacional da facção são, em sua opinião, ainda menos claros para os observadores e autoridades. Comparando as gerações de organizações criminosas, ele destaca que facções anteriores, como o Comando Vermelho (CV), historicamente associadas à dinâmica do “Tudo 2”, focavam no controle territorial armado e na extorsão.
O PCC, caracterizado como uma organização de uma geração posterior – e informalmente descrita como “Tudo 3” –, adota uma estratégia distinta. Ela prioriza o controle de cadeias de valor inteiras e utiliza a violência de forma instrumental para alcançar esse objetivo. Essa abordagem é evidente na forma como buscam não apenas ter postos de gasolina, mas controlar todo o setor de combustíveis, replicando essa estratégia em todas as cadeias produtivas em que atuam, da produção à distribuição e até mesmo à regulação. Segundo o sociólogo, os mercados ilegais operam de forma análoga a “ampulhetas”: um grande número de operadores na base da produção e no varejo, mas um número reduzido de “traders” que centralizam o poder sobre a cadeia de valor. É através dessa intermediação que uma miríade de empreendedores criminais, pequenos e grandes, se interligam, operando sob uma lógica “plataformizada”. No PCC, a coordenação dessa plataforma não está atrelada a uma pessoa específica, mas é exercida de forma institucional. Se um elo cair, outro o substitui e a estrutura continua funcionando. Os empreendedores que operam nas redes da facção reinvestem seus lucros tanto em mercados legais quanto ilegais, o que, para Feltran, torna a própria noção de “lavagem de dinheiro” quase obsoleta, já que não existe um “antes” do dinheiro sujo e um “depois” de sua lavagem; em vez disso, há esquemas associativos entre mercados ilegais e legais onde dinheiro de múltiplas origens se acumula, dificultando sua detecção e separação.
A avaliação de Feltran sobre as recentes operações, considerando as declarações do presidente Lula e do ministro Lewandowski de que se tratam da maior resposta já dada ao crime organizado, é cética. Para o sociólogo, a preocupação primordial não reside em governos específicos, mas sim na persistência de um modelo de segurança pública no Brasil que, em seus termos, é um desastre e que se tem reproduzido ao longo dos últimos quarenta anos. Ele defende que o país enfrenta um problema de direcionamento das políticas de Estado na área de segurança, não apenas de governo. O Brasil permanece refém de uma concepção que enxerga a segurança como uma guerra, e não como uma política pública que deveria ser orientada por conhecimentos técnicos e sociológicos.
Essa mentalidade belicosa, segundo Feltran, faz com que policiais se vejam como “guerreiros” e “heróis”, em vez de profissionais da política pública, desprezando áreas do conhecimento e resultando em um cenário de mortes excessivas tanto para criminosos quanto para os próprios agentes de segurança. O país, de acordo com o pesquisador, falhou em implementar o mínimo necessário que outras democracias consolidaram para garantir a segurança pública. A necessidade urgente seria, então, rever o direcionamento estatal das políticas de segurança. Sobre as acusações de que a oposição teria favorecido o esquema ao bloquear regras mais rígidas para fintechs no período da crise do Pix, Feltran não acredita na existência de uma visão político-institucional coesa dentro do PCC. Embora a facção fundamentalmente se coloque “contra o sistema”, o sociólogo observa que o próprio sistema parece interessado em compartilhar os lucros gerados pelas economias ilícitas.
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Em relação à capacidade do PCC de substituir rapidamente os mecanismos de lavagem de dinheiro, caso os atuais sejam desativados, Feltran é contundente. Ele recorda que a operação policial de 2020 já havia revelado métodos bastante similares aos observados nesta última semana, o que demonstra a capacidade de adaptação da organização e a necessidade de que as autoridades e pesquisadores aprendam com a experiência para compreender e combater eficazmente o fenômeno. O sociólogo enfatiza que a facção tem uma estrutura resiliente e dinâmica, capaz de contornar bloqueios com relativa facilidade, tornando o combate ao seu poder financeiro um desafio contínuo e complexo para as instituições estatais.
Com informações de BBC News Brasil
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