STF Inicia Julgamento de Ex-Presidente Jair Bolsonaro: Detalhes e Controvérsias Sobre a Competência

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O Supremo Tribunal Federal (STF) dará início, no próximo dia 2 de setembro, ao julgamento do ex-presidente da República Jair Bolsonaro. As acusações que motivam este processo são graves e multifacetadas, abrangendo a liderança de uma suposta organização criminosa armada, a tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, a prática de golpe de Estado, danos ao patrimônio da União e a deterioração de bens tombados.

Este evento marca a segunda vez na última década que a justiça brasileira se encarrega de analisar o caso de um ex-mandatário da nação. Anteriormente, em 2017, o então ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi condenado a nove anos e seis meses de reclusão em primeira instância, referente ao episódio da aquisição e reforma de um apartamento localizado no Guarujá, no litoral paulista, processo que mais tarde seria anulado pelo próprio STF. A competência para julgar uma figura política de tamanha envergadura, especialmente um ex-presidente, carrega consigo repercussões significativas para o curso político e jurídico do país, levantando questionamentos profundos sobre o sistema judiciário nacional.

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O sistema judicial brasileiro é estruturado em três instâncias hierárquicas, cada uma desempenhando um papel específico no processo de julgamento. A primeira instância é onde os processos são inicialmente instaurados e as provas são coletadas. Após a decisão da primeira instância, se uma das partes envolvidas discordar, é possível recorrer para a segunda instância, onde um novo tribunal, geralmente composto por um colegiado de juízes, revisa o processo e a decisão original. Por fim, a terceira e última instância, personificada pelo Supremo Tribunal Federal, atua na revisão das decisões anteriores com foco principal em verificar se houve violação da Constituição Federal, não necessariamente reavaliando o mérito factual do caso. O exemplo mais notório desse funcionamento foi o caso de Lula, cuja condenação, já confirmada em segunda instância, foi eventualmente revista e anulada pelo STF.

Foro Privilegiado: Um Fator Determinante para o Julgamento no STF

Uma particularidade crucial no sistema jurídico brasileiro é a existência do que se denomina “foro privilegiado”, tecnicamente conhecido como foro por prerrogativa de função. Esta prerrogativa se aplica a altas autoridades do país e garante que seus processos judiciais sejam iniciados diretamente em tribunais superiores, ao invés da primeira instância comum. No contexto do ex-presidente Jair Bolsonaro, é essa norma constitucional que direciona seu julgamento diretamente ao STF.

A discussão sobre a competência jurisdicional foi, inclusive, o ponto central que resultou na anulação do processo de Luiz Inácio Lula da Silva na Operação Lava Jato. A falta de competência do então juiz Sérgio Moro para julgar os casos específicos envolvendo Lula, aliada à declaração de parcialidade do magistrado pelo STF, liberou o ex-presidente da prisão e abriu caminho para sua reabilitação política. A grande distinção entre os casos de Lula e Bolsonaro reside na temporalidade dos supostos crimes. Enquanto as acusações contra Lula, como a da compra e reforma do apartamento no Guarujá, foram atribuídas a um período em que ele já não ocupava a presidência da República, as acusações contra Bolsonaro se referem a atos que teriam sido cometidos durante seu mandato presidencial. Os alegados crimes de liderar uma organização criminosa e tentar um golpe de Estado, por exemplo, teriam ocorrido antes da posse do atual presidente, Lula, em dezembro de 2022.

O advogado Renato Vieira, da Kehdi Vieira Advogados e presidente do Conselho Consultivo do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), explica à BBC News Brasil que “o caso do então ex-presidente Lula é diferente do caso do ex-presidente Bolsonaro do ponto de vista da competência, porque os supostos crimes pelos quais o Bolsonaro está sendo julgado foram cometidos quando ele era presidente da República”. Essa é a incidência direta da norma constitucional que confere à Suprema Corte a competência para processar presidentes, ministros e outras autoridades de alto escalão.

O conceito de foro por prerrogativa de cargo visa proteger as autoridades de processos judiciais de primeira instância que poderiam, em tese, dificultar o exercício de suas funções, dada a vastidão do número de juízes de primeira instância no Brasil (mais de 18 mil). No entanto, a aplicação dessa prerrogativa a ex-ocupantes de cargos tem sido um tema de oscilações na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Mariane de Matos Aquino, advogada da Garcia Campos Advogados e coautora de um artigo sobre o tema, aponta que, desde 1964, o entendimento do STF sobre essa matéria já mudou em cinco ocasiões. A decisão mais recente, de março do ano em curso, foi um marco, consolidando que a prerrogativa de foro para crimes praticados no cargo e em razão das funções persiste mesmo após o afastamento do indivíduo do cargo. Esse entendimento se aplica inclusive quando o inquérito ou a ação penal são iniciados após o término do mandato, confirmando a permanência do julgamento de Bolsonaro no STF. Sete ministros votaram a favor dessa interpretação (Luís Roberto Barroso, Gilmar Mendes, Cristiano Zanin, Alexandre de Moraes, Flávio Dino, Nunes Marques e Dias Toffoli), enquanto quatro votaram contra (André Mendonça, Luiz Fux, Edson Fachin e Cármen Lúcia).

Foro Privilegiado ou Mais Rigoroso? A Dualidade do Conceito

Apesar da denominação amplamente utilizada de “foro privilegiado”, diversos juristas questionam se a aplicação desta prerrogativa realmente concede um “privilégio” ao réu. Para alguns especialistas, ser julgado diretamente pelo STF pode, paradoxalmente, trazer desvantagens processuais, especialmente no que tange à limitação de recursos. Rafael Garcia Campos, coautor do artigo com Aquino e especialista em garantias constitucionais, argumenta que o foro privilegiado “esgota as chances, por exemplo, de recursos”. Ele compara a situação com a de Lula, que teve a oportunidade de recorrer em múltiplas instâncias – o Tribunal Regional Federal (TRF) em segunda instância, o Superior Tribunal de Justiça e, finalmente, o Supremo Tribunal Federal. O caso de Lula, com sentenças revisadas por três tribunais diferentes, difere significativamente do caminho de Bolsonaro, que terá seu julgamento circunscrito ao STF, não contando com o mesmo leque de possibilidades recursais dentro do território nacional.

No início de agosto, esforços no Senado Federal foram direcionados para aprovar projetos que visam a limitar ou eliminar o foro privilegiado. A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 333/2017 é um dos focos desses movimentos, impulsionados, em grande parte, por senadores alinhados ao ex-presidente, que veem nesta mudança uma forma de que os processos contra ele pudessem tramitar na primeira instância da Justiça. Contudo, essa discussão é paralela ao trâmite atual do processo de Bolsonaro no STF.

O Dilema Interno do STF: Turma ou Plenário?

Com a definição de que o julgamento de Bolsonaro ocorrerá no âmbito do Supremo Tribunal Federal, surge outra importante questão de competência, agora dentro da própria corte: a decisão deve ser proferida por uma das duas turmas, cada uma composta por cinco ministros, ou pelo Plenário, que reúne todos os 11 ministros do Tribunal? No caso das turmas, seriam necessários três votos para uma condenação, enquanto no Plenário, seriam exigidos seis votos. A defesa de Bolsonaro e diversos juristas têm levantado críticas e diferentes interpretações sobre essa escolha.

O caso de Jair Bolsonaro será julgado pela Primeira Turma do STF, que atualmente é presidida pelo ministro Cristiano Zanin e conta ainda com a participação dos ministros Cármen Lúcia, Flávio Dino, Luiz Fux e Alexandre de Moraes. O debate entre os juristas consultados pela BBC News Brasil revela visões divergentes sobre essa atribuição.

STF Inicia Julgamento de Ex-Presidente Jair Bolsonaro: Detalhes e Controvérsias Sobre a Competência - Imagem do artigo original

Imagem: bbc.com

Para Renato Vieira, Mariane de Matos Aquino e Rafael Garcia Campos, o Regimento Interno do STF (redigido em 2023) estabelece em seu artigo 5º que “compete ao Plenário processar e julgar originariamente nos crimes comuns, o Presidente da República, o Vice-Presidente da República, o Presidente do Senado Federal, o Presidente da Câmara dos Deputados, os Ministros do Supremo Tribunal Federal e o Procurador-Geral da República”. O artigo 9º, por sua vez, atribui às Turmas a competência para julgar deputados e senadores, bem como ex-ocupantes desses cargos. A interpretação de Vieira aponta para uma confusão gerada por emendas regimentais recentes (a partir de 2014) que teriam alterado as competências do Plenário versus as Turmas. A busca por maior celeridade processual, segundo ele, pode ter levado a uma interpretação equivocada que acabou direcionando o caso de Bolsonaro para a Primeira Turma. “Eu não tenho a menor dúvida de que esse caso deveria ser julgado dentro do Plenário”, afirma Vieira, que acredita que a agilidade não justifica retirar a competência do órgão plenário em casos de tamanha magnitude.

Por outro lado, a advogada Maíra Beauchamp Salomi, do escritório Salomi Advocacia Criminal e vice-presidente da Comissão de Estudos de Direito Penal do Instituto dos Advogados de São Paulo, oferece uma perspectiva diferente. Salomi argumenta que o julgamento na Primeira Turma pode ser justificado pela conexão com as ações penais referentes aos atos de 8 de janeiro. Um artigo específico do Código Penal permite que casos conexos a ações penais originárias sejam julgados pelo mesmo órgão competente. Como os primeiros casos envolvendo os eventos de 8 de janeiro, incluindo financiadores e deputados, foram julgados pela Primeira Turma, essa conexão “puxou” para o mesmo colegiado outros casos, inclusive o de Bolsonaro, ainda que este não tivesse foro privilegiado. Além disso, ela observa que o relator, ministro Alexandre de Moraes, teria o poder de remeter o caso para o Plenário se quisesse, mas não o fez, tendo sua decisão chancelada pela própria Turma. Salomi ainda pondera que o artigo 5º do regimento interno, que menciona “o Presidente da República”, não seria taxativo quanto a ex-presidentes, que não estariam especificamente citados para julgamento no Plenário. Nesse sentido, nem a discussão sobre a manutenção ou não do foro privilegiado seria central para determinar o órgão julgador dentro do STF.

A defesa do ex-presidente tem sido veemente em suas críticas ao julgamento na Primeira Turma, descrevendo-o como um foro “carimbado”. O argumento baseia-se na composição da Turma, que inclui quatro ministros (Cármen Lúcia, Luiz Fux, Cristiano Zanin e Flávio Dino) indicados por presidentes ligados ao Partido dos Trabalhadores, com Zanin e Dino tendo atuado como advogado e ministro de Lula, respectivamente. O quinto ministro é Alexandre de Moraes, relator de importantes inquéritos envolvendo Bolsonaro. Os dois ministros indicados pelo próprio Bolsonaro ao STF, Nunes Marques e André Mendonça, compõem a Segunda Turma e não participarão diretamente do julgamento, a menos que o caso fosse analisado pelo Plenário. Em março, o ex-presidente criticou publicamente essa situação, alegando que “preservar o foro por um motivo ‘carimbado’, mas negar o julgamento pelo órgão competente, é transformar a Constituição e o regimento em um self-service institucional: escolhe-se o que serve ao objetivo político do momento e descarta-se o que poderia garantir um julgamento minimamente justo”.

Rafael Garcia Campos contrapõe essas alegações, ressaltando o histórico de independência de voto dos ministros do STF, que muitas vezes votam contra os governos que os indicaram, inclusive em relação a nomeações de gestões petistas. Além disso, Campos sugere que os próprios ataques frequentes de bolsonaristas à Corte e a seus membros contribuíram para um fortalecimento da unidade entre os ministros nas decisões judiciais, união que, por vezes, transcende posições políticas de esquerda ou direita.

Recursos e Potenciais Contestações Futuras

Diante da complexidade e das controvérsias que envolvem o processo, surge a pergunta: caso Jair Bolsonaro seja condenado pela Primeira Turma do STF, ainda haveria caminhos para recurso no âmbito da Justiça brasileira? As possibilidades são limitadas. Uma das poucas vias disponíveis seria a apresentação de embargos infringentes, mecanismo acionável em situações onde há uma maioria estreita na votação. Se, por exemplo, o placar da condenação na Primeira Turma fosse de três votos contra Bolsonaro e dois a seu favor, a defesa poderia pleitear os embargos infringentes, o que levaria o caso para reanálise pelo Plenário da Suprema Corte, com a participação de todos os 11 ministros. Renato Vieira esclarece que, embora não seja um “recurso” no sentido de subir de instância – já que tudo se mantém dentro da terceira instância –, na prática, os embargos infringentes oferecem uma nova oportunidade para o réu reverter a condenação.

Outra hipótese, considerada mais remota pelos juristas ouvidos, seria um habeas corpus. No entanto, uma súmula do STF (Súmula 606) estipula que não cabe habeas corpus contra ato de ministro da própria Corte, o que dificulta consideravelmente essa opção. Caso as possibilidades de recurso no Brasil se esgotem com uma eventual condenação definitiva no STF, a alternativa legal restante para Bolsonaro seria buscar órgãos judiciais internacionais, como o Tribunal Penal Internacional ou cortes de direitos humanos, embora esses caminhos apresentem complexidades e alcances diferentes na prática.

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Ainda paira a dúvida sobre a estabilidade do julgamento em si. Dada a divergência entre juristas em aspectos como a competência (Primeira Turma ou Plenário) e a própria validade do foro privilegiado para ex-presidentes, o risco de o resultado futuro ser contestado ou até anulado é real. Maíra Beauchamp Salomi, em consonância com essa preocupação, aponta para a histórica instabilidade da jurisprudência brasileira, especialmente no âmbito do Supremo Tribunal Federal, que por vezes adota interpretações diversas para os mesmos dispositivos legais em diferentes composições. Contudo, a decisão de anulação do processo de Lula no passado devido a um vício de competência demonstra que a possibilidade de revisão processual, ainda que mais complexa para decisões da corte máxima, existe. O contexto de ataques institucionais à Justiça brasileira, provenientes tanto do cenário político doméstico quanto de nações estrangeiras (como sanções e o “tarifaço” mencionado na época do governo Trump), adiciona uma camada de excepcionalidade. Para Salomi, “o Supremo mais acertou do que errou. Temos que ter uma visão um pouco sistêmica. Não podemos nos esquecer que tudo isso é uma briga institucional”. Esse cenário peculiar exige da Suprema Corte um equilíbrio delicado entre seguir um processo cauteloso e adequado, ao mesmo tempo em que precisa manter a firmeza diante de pressões externas.

Com informações de BBC News Brasil


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